“O Coração do Assassino”

O Padre Teodoro Medeiros entrevistou a autora/realizadora do documentário que narra um perdão peculiar

O Igreja Açores teve recentemente oportunidade de falar com a realizadora Catherine McGilvray,  autora do documentário “O Coração do Assassino”, ainda por estrear em Portugal. São 56 minutos que narram a incrível história de perdão de uma família ao assassino da sua filha.

Para acreditar, é mesmo preciso ver o filme, ou, em alternativa, ler o que a autora conta sobre as circunstâncias de um filme tão particular e tão interpelativo.

P. Teodoro Medeiros (IA): Obrigado por falar connosco! Pode dizer-nos um pouco sobre si e a sua carreira até agora?

CM: Nasci em Roma, de pai australiano e mãe francesa… nascida e crescida em Roma, fiz os estudos de história do cinema aqui na Universidade “La Sapienza”. Desde cedo soube que queria ser realizadora… fiz alguns documentários, uma primeira longa-metragem que se chama “Iguana”; escrevi durante alguns anos para televisão. Mas, no cinema, quase só faço documentários.

P. Teodoro Medeiros (IA): Como surgiu a ideia do filme “O Coração do Assassino”?

CM: Enquanto fazia um documentário sobre o fundador de uma ordem religiosa. Uma das irmãs religiosas contou-me este caso de uma religiosa morta na Índia, em Kerala, cuja família oferece este perdão incondicional. O homem que matou a religiosa é acolhido como irmão e filho pelas próprias mãe e irmã da religiosa assassinada.

Elas contam-me a história e explicam-me o Raki, o rito de perdão dado através da cultura dele, o Hinduísmo… portanto, não se tratou de uma atitude prepotente, do género “nós somos cristãos tão bons que te perdoamos”. O que fizeram foi entrar na cultura dele e dar-lhe este perdão na forma mais natural à compreensão dele; construíram uma ponte.

E eu penso comigo: -“ora bem; eu quero conhecer estas pessoas e quero contar esta história!”

P. Teodoro Medeiros (IA): E como se iniciou o processo de o fazer, em concreto?

CM: Depois desse momento fiz o projeto e falei com a religiosa da ordem da irmã Rani Maria (a irmã assassinada) que estava aqui em Roma nessa altura (por sinal para tratar da causa de beatificação da irmã Rani). Pensei que, para fazer o filme, teria necessariamente de lhes pedir autorização; era um assunto que lhes dizia respeito a elas em primeiro lugar. Ela disse-me que não havia problema, podia ir com ela à Índia em Outubro e fazer as filmagens.

Fui então à Índia, conheci Samundar Singh, criei uma ideia do que queria fazer e voltei a Itália. Comecei a procurar um produtor. Não encontrei ninguém; a história era considerada de teor demasiado religioso e isso, infelizmente, era considerado um obstáculo. Depois havia ainda a questão da língua, aliás duas, do norte e sul da Índia, e que tornavam difícil a aceitação do filme.

Outro problema era que os eventos tinham já se tinham passado; como passar a imagem uma história, em formato documental, de algo que não se podia filmar? É aqui que aparece o meu amigo Renato Spaventa: contei-lhe do projeto e ele disse-me: -“tens de fazer este filme… absolutamente!”

E foi o Renato que investiu comigo dinheiro e tempo. Fomos os dois sozinhos fazer o filme; eu filmava e ele gravava o som. A equipa deste filme foram duas pessoas. Chegámos à aldeia onde a irmã Rani fora morta e fomos acolhidos no convento das irmãs. Não havia hotéis nem albergues, tinha de ser assim ou seria totalmente impossível.

Recorremos ao Pe. Swami, que é um católico carmelitano mas vestido à maneira tradicional hindu. Ele falava inglês, as irmãs um pouco… de maneira que, até pela questão da comunicação, não teríamos avançado sem ele. O Swami pediu-nos para participarmos num retiro de duas semanas, lá no seu centro de espiritualidade.

Isso foi muito importante porque pudemos ambientar-nos, perceber melhor as pessoas que ali viviam e também vencer a desconfiança. Nesta segunda viagem não se sentiu tanto, mas na primeira o ambiente era de grande desconfiança; as pessoas olhavam para esta mulher com uma câmara de filmar e não percebiam o que queria dizer aquilo. Tive medo do que poderia acontecer…

P. Teodoro Medeiros (IA): Durante as filmagens, teve de fazer concessões em relação ao que tinha idealizado?

CM: A questão de como contar a história, como construir o filme foi muito pessoal. Pensei nos protagonistas da história; apercebi-me de que não me conseguia identificar com as pessoas que tinham realizado um gesto daqueles (o perdão e adoção do criminoso). Decidi que queria apresentar o ponto de vista do assassino.

Eu não conseguia encaixar este perdão; era uma coisa extraordinária, divina, fora de tudo. Era mais fácil perceber que a graça tocasse o coração de alguém caído. Nenhum de nós é assassino; mesmo assim, percebe-se melhor que ele queira ser perdoado do que alguém que seja capaz de aceitar quem matou a própria filha.

Depois das duas semanas de retiro, comecei a falar com Samundar Singh (o assassino). Isto também demorou mais do que eu pensava; numa região sem turismo, sem ocidentais, sem nada em comum a não ser a presença de Swami, como podia ele aceitar-me? E eu a pedir-lhe que me falasse dos momentos piores da sua vida!

Para mim, foi muito importante a forma de fazer o filme: não foi um filme sobre aquelas pessoas mas com aquelas pessoas. No sentido que não fiz um plano, não escrevi o filme para depois eles representarem… sabia que queria fazer encontrar novamente Samundar com a mãe; sabia que já não a via há bastante tempo (mora a 44 horas de comboio e não tem sequer dinheiro para a viagem).

P. Teodoro Medeiros (IA): Que método de trabalho seguiu?

CM: Tentei imaginar situações mas… foi tudo um pouco fora do vulgar; não tivemos nenhum tipo de pré-acordo para filmar, por exemplo. Quer dizer que fizemos a montagem e voltámos à Índia em 2012 para mostrar o filme. Se algum deles se tivesse oposto, não teria podido lançá-lo. E de facto Samundar pediu que se cortasse uma cena: mostrava a má relação que tinha tido com a família de sangue (e ele tinha-se já reconciliado com seus pais).

Tivemos de cortar a cena do Batismo de Samundar (é proibida aos locais a conversão a outras religiões). Era um momento muito belo mas teria sido muito perigoso mantê-lo; Samundar poderia até ser morto por uma coisa dessas. De modo que Swami propôs que se mostrassem só algumas partes. O que se vê no filme são os panos que se afastam: tornou-se um rito de purificação e gosto do resultado.

P. Teodoro Medeiros (IA): Como foi o processo de arrependimento de Samundar Singh? Em que mudou ele?

CM: Samundar foi para a prisão por causa dos notáveis da sua terra; convenceram-no de que era um gesto patriótico matar aquela mulher que prejudicava as pessoas. Por isso, ele acreditava, no início, que tinha feito algo de muito bom. Ora, quando foi acusado e condenado, essa gente não o socorreu, como tinham prometido antes; tinham-lhe garantido que ele havia de escapar a problemas maiores.

Em vez disso, ele foi condenado a pena perpétua e ninguém o ajudou. Além disso, os seus conselheiros não chegaram sequer a ser acusados; ninguém se atrevia a depor contra eles. É bom lembrar que Samundar tinha vindo de um ambiente de pobreza. O que aconteceu foi que se aproveitaram da sua credulidade e do seu desejo de uma vida melhor.

Depois da condenação, como é fácil perceber, Samundar ficou muito revoltado contra esses falsos amigos. Mesmo assim, o seu desejo de vingança referia-se pelo que lhe tinham feito a ele; não tinha ainda caído em si, não tinha tomado consciência do mal que fizera a uma pessoa inocente. Nem percebera ainda que fora manipulado, em vez de apenas abandonado pelos seus amigos.

De modo que, quando foi perdoado por Swami e pela família de Rani Maria, só aí ele percebeu que tinha de mudar. Ou seja, era necessário que ele perdoasse também. De facto, recebeu um indulto completo da pena (a graça que o tirou da prisão foi pedida pela mãe e irmã de Rani Maria). A partir daí, Samundar sentiu que se tinha de libertar do seu ódio.

P. Teodoro Medeiros (IA): Esse perdão teve muitas consequências?

CM: Eu diria que se criou um vírus positivo a partir deste momento: este perdão propagou-se a muitas outras pessoas do lugar onde vivam os protagonistas desta história. As próprias irmãs do convento começaram a ser melhor aceites pela população geral; cessaram as intimidações (às vezes andavam pelas ruas e viam gente com varapaus na mão à volta delas).

O próprio grupo de padres que vive naquela aldeia também se sentiu mais acolhido; a desconfiança que se respirava antes desapareceu. Até os notáveis, os que tinham provocado o homicídio, pararam com as suas actividades de combate a estes agentes religiosos. Quase que se pode dizer que se envergonharam das atitudes anteriores.

O Swami foi também ter com eles e ofereceu-lhes perdão… não aceitaram esse perdão… mas deixaram de perseguir e pressionar os cristãos. De modo que pode-se dizer que nasceu uma grande paz depois deste caminho percorrido por Samundar: depois do perdão que lhe deram.

P. Teodoro Medeiros (IA): Durante esse processo de arrependimento, correu alguma coisa mal?

CM: Fizeram um filme sobre este caso lá na Índia: foram entrevistados quase todos os intervenientes, a história passou na televisão e teve uma grande difusão no país. A seguir a isto, quem não conhecia bem a situação começou a pensar que a conversão de Samundar fora falsa e oportunista; teria sido uma maneira maliciosa de não cumprir a pena.

Esta versão dos factos compreende-se até certo ponto: como no meu próprio caso, não é fácil perceber que se pudesse perdoar assim ou que se possa mudar depois de fazer uma coisa destas. A verdade é outra porém; Samundar não acolheu o perdão passivamente mas deixou-se transformar de forma ativa.

Tanto assim é que a sua nova mãe faleceu em Setembro passado e ele foi ter com ela. Foi ele quem tratou dela até ao fim e esteve lá ao lado dela, de uma maneira que só os filhos costumam fazer. No meio dos outros filhos, porque são muitos, mas todos o aceitaram. É algo mesmo sobrenatural.

E cada vez que ele os visita, há um grande almoço, há festa, comem coisas boas. Nós pudemos ver tudo isto com os nossos olhos e foi verdadeiramente extraordinário. Mostrei o filme numa cadeia do Bronx a 50 reclusos que viram o filme em silêncio… no fim disseram que era importante para eles; agradeceram-me…

Não é um filme que eu escolhi; é um filme que me aconteceu e que eu só pude narrar sem trair.

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