Os pobres de Dundas Street

Pelo padre José Júlio Rocha

Francisco Gonzaga é um primo que muito prezo. Benfiquista ferrenho, as nossas conversas sobre futebol são sempre em clima de riso e provocação, brincadeira e abraços. Vive no Canadá e fundou, salvo erro, com outro primo, João do Rego, o “Nosso Talho”, uma empresa fundeada na Dundas Street, Toronto, de venda de carnes, que prosperou.

Nos anos oitenta do século passado, o famoso poeta e improvisador Charrua, alma lírica da nossa terra, estava por Toronto. Conheceu o “Nosso Talho” e um dia, passando por lá, o Francisco pediu-lhe que fizesse uma quadra. Charrua não se fez esperar e declamou:

Francisco de ideias nobres

E pensamentos serenos,

Corta bem a carne aos pobres,

E, aos ricos, mais ou menos.

Quando ouvi essa quadra fiquei com um nó na garganta, por causa do terceiro verso “corta bem a carne aos pobres”. É uma sentença estruturante da nossa identidade açoriana, portuguesa, latina, católica: nunca se deve enganar um pobre. Não estou a ter ideias românticas sobre a pobreza e os pobres, não estou a imaginá-los no pedestal seráfico das vítimas inocentes de uma sociedade feroz. Sei bem que a pobreza hoje está associada à desestruturação social e familiar, à violência, ao álcool e à droga, ao crime e à prisão. Mesmo assim, nunca devemos enganar um pobre.

Max Weber escreveu, nos anos vinte do século passado, um dos mais importantes volumes da sociologia de todos os tempos: “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. A tese é a de que a crença, sobretudo calvinista, nos valores do trabalho e da riqueza alcança a bênção de Deus. Estar bem na vida, sobretudo economicamente, é uma graça. Provavelmente esta será uma das razões porque os países de matriz protestante sejam economicamente mais prósperos e capitalistas do que os de matriz católica.

Aqui há uns anos passei por Genebra, Suíça, pátria mãe do calvinismo, e entrei na igreja mais importante da cidade, calvinista, naturalmente. Sóbria e rica. Começaram a entrar fiéis para uma celebração. Eles de fato preto e gravata, ou papillon, preto também. Elas discretas e elegantes, em finos e simples vestidos só a preto e branco. Compreendi que pertenciam à fina flor da finança da cidade pelos carros estacionados nas redondezas da igreja: não faltavam Rolls Royce ou Bentley ou similares. A nata dos negócios da banca ou dos relógios estava ali, calvinista e feliz.

Nós, os católicos, temos uma tradicional vergonha de ser ricos. Orgulhamo-nos de ser pobres honestos, temos uma adoração pela pobreza, com tendência, muitas vezes, para o pauperismo e para a moral da esmola. O nosso Deus feito homem nasceu num estábulo e morreu numa cruz. O dos protestantes também, mas isso é de somenos importância para eles.

Neste campo, acho que o maior erro dos católicos foi considerar a pobreza como um estatuto ou um ideal a prosperar, guardando-os bem guardados como pobres, que nunca deixarão de ser pobres, porque a esmola faz-nos mais bem a nós do que a eles.

Que eu saiba, Jesus nunca deu esmola: tinha uma atitude bem diferente. Curava, promovia, dava dignidade ao pobre e ao desfavorecido, anunciava que o Reino dos Céus (que não é o paraíso mas o reinado de Cristo na Terra) era, preferencialmente, dos pobres e desfavorecidos. A religião de Jesus não era o ópio do povo mas a sua dignidade.

Acho que, hoje, a nossa “ética dos pobres” não é católica nem protestante, nem ateia nem nada. Aqui há dias morreu um desgraçado que andava quase sempre podre de bêbado, a cair pelos cantos e a mijar nas calças. Foi encontrado morto havia dias, já cheirava, sem família nem ninguém que se dignasse a pensar sequer nele, absolutamente só. Ninguém fez nada, ninguém lhe chorou uma lágrima, o mundo continuou, impávido e satisfeito por menos uma chaga social.

Cada pessoa é um drama, uma tragédia ou uma vitória. Toda a gente é pessoa. E esta é a grande dignidade do ser humano que Jesus veio trazer. Este mundo que encolhe os ombros e aponta o dedo ao drogado, ao bêbado, ao ladrão maltrapilho, ao cigano ou ao parasita do rendimento social não é cristão: é niilista.

Charrua, cantando de um desgraçado que morreu desgraçado, rimou:

P’rá vida não foi capaz,

Na morte será feliz.

Porque Deus sabe o que faz

E a gente não sabe o que diz.

*Este texto foi publicado na edição desta sexta feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio
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