Ouvidor da Povoação diz que a Igreja não pode continuar centrada nos Sacramentos adiando a formação

Pe Ricardo Pimentel fala sobre centenário da ouvidoria “mais isolada” da ilha de São Miguel

É ouvidor há pouco mais de dois anos mas na entrevista que dá ao Sítio Igreja Açores, o ouvidor da Povoação, que este ano é uma das ouvidorias da ilha  de São Miguel que assinala 100 anos, procura dar respostas diretas e assertivas sobre a realidade com que lida diariamente.

“Aqui não há ódios à Igreja” nem anticlericalismo, mas porque o esforço é diário: procuramos fazer a síntese” entre o passado e o presente “estando atentos às manifestações de piedade popular para que depois possamos pedir que o povo esteja presente nas nossas ações de formação e evangelização”, diz o sacerdote.

Até porque, a religiosidade popular “continua a ser uma grande barreira contra o secularismo”, precisa.

O Pe Ricardo Pimentel fala da passagem da imagem peregrina, acusando algum ceticismo relativamente ao contributo  no despertar de um novo compromisso dos açorianos e elege como prioridade das prioridades a formação. Dos leigos, mas também do clero, sublinhando que nem sempre é fácil levar as pessoas a reconhecerem esta necessidade. Quanto ao centenário fica a garantia de uma festa partilhada por todos.

 

Sítio Igreja Açores-  A ouvidoria da Povoação está a comemorar cem anos. Como é que o centenário vai ser vivido?

Pe Ricardo Pimentel- O anúncio da celebração do centenário da Ouvidoria da Povoação teve, desde o início, uma aceitação muito generosa da parte de todas as entidades do concelho e de todos os cristãos em geral.Tem vindo a ser preparado com muita alegria e empenho da parte de todos. Esta celebração servirá, sem dúvida alguma, para aprofundar os laços entre as seis comunidades. Temo-nos esforçado para que as fronteiras das paróquias sejam cada vez mais abertas e que se trabalhe mais numa pastoral de conjunto. Os eventos celebrativos não serão centrados apenas na Matriz mas serão distribuídos pelas seis paróquias. Claro que geograficamente não é a Ouvidoria mais fácil para uma pastoral de conjunto mas temos vindo a dar passos significativos graças à abertura do clero e do Conselho Pastoral de Ouvidoria. Julgo que será uma ótima oportunidade mas dar a todas as comunidades a consciência de que é necessário semear agora para que daqui a cem anos outros possam colher como nós estamos a colher na atualidade.

 

Sítio Igreja Açores- É uma ouvidoria geograficamente dispersa. Como se consegue fazer unidade pastoral numa zona tão diversificada e tão distante?

Pe Ricardo Pimentel- Sim, é uma Ouvidoria muito dispersa composta por três zonas naturais: Água Retorta e Faial da Terra, Vila e Nossa Senhora dos Remédios, Furnas e Ribeira Quente. Além da dispersão geográfica temos a identidade cultural e religiosa de cada uma das paróquias. Agora, temos notado que,  quando  as diferenças são respeitadas, cada comunidade torna-se mais generosa na pastoral de conjunto. E já se vê alguns frutos: o Curso Preparação do Matrimónio já há muitos anos é a nível de Ouvidoria, o Curso de Preparação para o Baptismo é a nível de Ouvidoria, temos um coral de cerca de 100 vozes composto por elementos de todas as paróquias, as reuniões do clero são feitas todos os meses numa paróquia diferente para podermos contactar com as diversas comunidades (tem sido uma experiência muito gratificante ver o acolhimento que nos fazem), as formações são feitas em conjunto, etc. Isso para dizer que  todos têm-se esforçado por perceber que no trabalho de conjunto está o futuro das comunidades (quanto mais pequenas são as comunidades mais necessário se torna este trabalho para se poder rentabilizar os recursos humanos).

 

 

Sítio Igreja Açores- Que desafios enfrenta esta realidade pastoral? 

Pe Ricardo Pimentel- O grande problema desta zona é o envelhecimento das nossas comunidades e a saída dos nossos jovens formados para os grandes centros urbanos da ilha.  Como proporcionar aos mais novos condições para se poderem fixar? A Ouvidoria da Povoação, neste momento, acaba por ser a mais periférica da ilha de São Miguel. Para além disso, notamos que precisamos de leigos mais formados para que se tornem mais empenhados. Outro problema que é de difícil solução: como fazer para que as pessoas sintam que necessitam de formação? Vamos aproveitando o CPM e o CPB mas é muito pouco para dar resposta àquilo que realmente precisamos.  A Igreja, se continuar com o sistema de “Sacramentos primeiro e só depois a formação cristã” vai continuar na ilusão de um regime de cristandade que já não existe.

 

Sítio Igreja Açores- Hoje vivemos um tempo de reconfiguração do espaço crente. Ainda assim nos Açores, em particular em meios mais pequenos como a Povoação, a tradição ainda se mantém. Como se faz a síntese entre o passado e o presente nesta igreja reconfigurada?

Pe Ricardo Pimentel- Quando vim da Ilha Terceira para esta Ouvidoria senti uma grande diferença: aqui não há ódios à Igreja! Há uma ótima relação, de uma maneira geral, da população com os seus párocos e com a paróquia. Isso é logo meio caminho andado para se poder iniciar um processo de diálogo. As tradições estão bastante enraizadas (às vezes fazendo como que um plano pastoral paralelo, porque o povo tem o seu calendário fixo). Procuramos fazer a síntese estando presente nas manifestações de piedade popular para que depois possamos pedir que o povo esteja presente nas nossas ações de formação e evangelização.  De facto, não é fácil fazer o equilíbrio entre o passado e o presente; vem sempre alguém que nos diz: “sempre foi assim!” . O respeito por estas realidades é a melhor atitude a ter para que depois possamos apelar ao sentido comunitário e de compromisso da fé.  Além disso, temos consciência de que a religiosidade popular continua a ser uma grande barreira contra o secularismo.

 

Sítio Igreja Açores- Acaba de receber a visita da  Imagem peregrina e na altura da presença da Imagem pediu aos povoacenses que como Maria abrissem os seus corações e se deixassem contagiar pelo Amor dela a Deus. Que balanço faz?

Pe Ricardo Pimentel- O balanço a curto prazo é bastante positivo.

Igrejas cheias, todas as entidades civis e religiosas unidas, celebrações bem vividas, as paróquias todas unidas pela força agregadora da Imagem Peregrina. A visita encheu-nos os olhos mas não sei se seremos capazes de produzir frutos de mudança…O problema está no balanço a médio e longo prazo: que efeito terá nas comunidades esta visita? Haverá mais cristãos comprometidos?  Mais cristãos a procurarem os Sacramentos da Eucaristia e Penitência? Os movimentos sairão mais reforçados? Não me parece que a nenhuma dessas perguntas a resposta seja afirmativa. Os que já vinham continuarão a vir e os que não vinham continuarão na sua. Claro que é um fenómeno que merece ser estudado; impressiona ver batizados distantes de tudo aos pés da Imagem sem máscaras. E aqueles que nunca aparecem,  vieram e marcaram presença… porquê? Vê-se que que as multidões, como no tempo de Jesus, têm fome e sede de Deus e que parecem “ovelhas sem pastor”. Como podemos alimentar esta gente? Será que eles procuram o alimento que lhes queremos dar?  O drama será constatar que passou a imagem e continuou tudo na mesma porque este tempo tem medo de tudo o que compromete.

 

Sítio Igreja Açores- Á passagem da Imagem Peregrina fica a sensação de que a população açoriana é muito crente e muito participante. Mas a verdade é que não é assim. Como é que vê esta questão?

Pe Ricardo Pimentel- Alguém de fora dos Açores dizia-me um dia que o Povo Açoriano é tão religioso, tão religioso que não consegue ser cristão. Talvez o problema esteja aqui: a religião natural impressa nos nossos corações quase que afoga o ser cristão.  O nosso povo, por falta de formação, continua a querer um “deus” que lhe peça sacrifícios de “sangue” mas que não lhes peça compromisso e comunidade. Se o Espírito Santo fosse o ano inteiro, se o Senhor Santo Cristo fosse o ano inteiro, se as romarias fossem o ano inteiro,  se implicassem “o martírio da fidelidade quotidiana”  teriam a mesma adesão? O povo açoriano vive muito de ciclos breves: faz-se a festa e já não é necessário mais nada.

 

Sítio Igreja Açores-  A igreja parece viver hoje muito de momentos e por isso, as vezes a pastoral anda muito aos solavancos. A ouvidoria que dirige tem um envelhecimento da população e muitos dos movimentos mais ativos como os grupos bíblicos, a ação rural, são grupos muito envelhecidos. Como é que tenciona dar a volta a esta situação?

Pe Ricardo Pimentel- Depende muito dos grupos. É facto que alguns movimentos são envelhecidos mas é também facto que existem bons grupos de jovens, bons agrupamentos de escuteiros e uma boa equipa de pastoral juvenil.  Claro que o concelho está envelhecido, mas isso não depende da Igreja… Claro que há problemas de participação mas acabam por ser um  problemas transversal a todos os organismos: até os clubes de futebol têm problemas em cativar jovens… As novas tecnologias absorvem muito tempo aos mais jovens e torna-se difícil de cativa-los. Vamos trabalhando com aqueles que querem e estando presente na vida dos que não querem tanto…

 

Sítio Igreja Açores- A partir da povoação como é que vê a realidade diocesana, com um novo prelado, prestes a iniciar um novo episcopado que só por ser outro já é diferente?

Pe Ricardo Pimentel- Julgo que a vinda de D. João foi uma bênção para a diocese. A sua capacidade de trabalho e disponibilidade são um testemunho. Na visita da imagem peregrina tivemos a oportunidade de privar e notar que é um homem de convicções e que nos inspira a sensação de segurança e tranquilidade. É seguro mas afável. Vê-se que está profundamente marcado pelo espírito conciliar. Mas o melhor de tudo, é que vindo de Coimbra e do Porto, é já açoriano.

 

Sítio Igreja Açores- Que prioridades vê serem essenciais para o futuro imediato da diocese?

Pe Ricardo Pimentel- Formação, formação, formação. Sem isso nunca teremos leigos comprometidos e a nossa pastoral nunca deixará de ser de manutenção. As comunidades funcionam porque têm um núcleo restrito de leigos bem formados. Precisamos de mais. Os leigos têm de perceber que os problemas da Igreja não são só do clero mas de todos, têm de saber que são co-responsáveis pela comunidade.

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