Quando a bola não é só para jogar

Por Carmo Rodeia

A América ferve. Há muito que vinha a ferver, em lume brando, entretida com outras coisas. A América reúne tudo. Cresci na ilusão de que ali só estavam os bons. Mesmo quando lia coisas sobre a América:  a sua história feita à custa de tantas mortes, a escravatura, o livre arbítrio das suas forças policiais, nomeadamente o FBI e a CIA e os seus espiões, unidades que resolviam os diferendos à lei da bala,  o Ku Klux Klan, a clivagem entre ricos e pobres, a supremacia do dinheiro… Mas também a América da democracia, que aprendemos nos livros de Tocqueville, das oportunidades -da igualdade de oportunidades-, da cidadania participativa, do voluntariado e do altruísmo, da aventura depressiva da geração Beatnik, de Kerouac e Ginsberg que nos fazia querer ser rebelde, da independência do jornalismo que derruba o governo mais poderoso do mundo. Sim, foi nesta dicotomia que me ensinaram a gostar da América ao ponto de ter equacionado ir para lá viver em duas ocasiões da minha vida: quando fui bolseira da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento em 92 e vivi durante uns meses em Nova Iorque, a estudar na Columbia University, num Summer Program para jornalistas,  e depois de ficar sem emprego em 2011. Quem sabe,  iludida com o que me ensinaram da América ou com a experiência de jovem estudante em Nova Iorque. E este é um dos principais dramas dos europeus quando tentam perceber a America a partir de cidades de vanguarda, onde reside a elite intelectual e onde tudo parece diferente, reunindo o bom e o mau mas, com sorte, o ambiente natural para o triunfo do bem. Foi por este erro de avaliação que ainda hoje nos custa a digerir a vitória de Trump nas últimas eleições. Donald Trump é o protótipo exemplar do americano branco, da América profunda, pouco atento ao mundo e centrado nos negócios, em que a conta bancária é muito mais importante do que as pessoas. Bem pode viver no coração de Manhattan mas não passa de um provinciano. Com uma agravante: é o presidente improvável (literalmente) da maior e mais importante potência do mundo.

Lembro-me de ter chegado a Nova Iorque e uma semana depois me ter perdido no metro. Não é difícil dada a confusão das linhas. Basta uma paragem de distração e já estamos no sitio errado. Novata na cidade, ainda andava de mapa. Em vez de apanhar o metro que me daria acesso ao final da linha da Brodway, e me levaria ao campus da Columbia onde residia, apanhei outro comboio e percebendo que estava errada, saí na estação seguinte. Saquei do mapa e qual turista subi as escadas para me orientar. Não sendo o melhor pombo correio percebi facilmente que se atravessasse o jardim, que estava do meu lado direito, sairia bem perto de casa. Vivia na 137, na fronteira com o Spanish Harlem. De repente, um jovem negro com um livro na mão, semelhante a uma Bíblia, dirigiu-se-me e num tom entre o pânico e o ameaçador alertou-me que eu poderia estar a correr perigo de vida, entalada no coração do Harlem, por crack dealers que vendiam, porta sim porta sim, o pó de todas as tentações. Branca dessa maneira, dizia-me, (e eu até sou bem morena, de pele escura) seria o alvo fácil. “A semana passada morreu aqui uma igual a ti: foi violada e estrangulada a seguir”. Nem sei o que senti. Disseram-me que nunca apanhasse um `gypsy cab` em Nova Iorque, só os amarelos da Companhia. Ali não havia outra hipótese. Chamou um. Era um ford mustang antigo, castanho escuro, com os bancos forrados de uns panos de padrões étnicos. Estou arrumada pensei eu. Isto é uma armadilha e a minha vida termina aqui. Não havia ainda telemóveis ou pelo menos eu não tinha. Entrei no carro mas sempre com a mão no manipulo da porta e o os olhos no condutor. Pronta para saltar se fosse preciso. Tinha visto isso nos filmes americanos: melhor morrer da queda do que de uma violação qualquer. Como calculam estava aterrorizada. Preconceito? Mas eu nunca fui racista! Nunca estive tanto tempo calada eu que sou uma tagarela. Nos dez minutos que estive naquele carro, que me levou a bom porto, pensei em tudo e em nada. No final, quando estava à porta de casa o condutor, taxista que certamente tinha de fazer pela vida sem o conforto dos sindicatos da Companhia (sim, porque nos Estados Unidos há sindicatos para tudo!) olhou para mim e num tom meio brincalhão, ciente do meu pavor, disse cortesmente: “Voilá, miss…”. Fiquei sem pinga de sangue. Era afro americano, filho de imigrantes. A mãe era francesa da Martinica. Já tinha vindo duas vezes à Europa mas gostava era do Harlem. Ali era a sua casa. Porque ali também vive gente decente, “you know?”.

Envergonhada, e com a voz embargada, peguei numa nota de 50 dólares o equivalente ao que recebia diariamente como bolsa, e entreguei-lha. Era a única coisa decente que poderia fazer. Fiz como os americanos fazem: paguei, e paguei mais do que devia, numa tentativa de alivio de consciência pelo preconceito, pelo julgamento, pelo medo.

Na América real é assim todos os dias. Dizem-nos que não importa onde nascemos, de onde vimos, mas na verdade quem vem de baixo tem de lutar mais. E nem sempre as oportunidades surgem da mesma maneira. Não conheço os 50 estados, nem sei se algum norte americano conhece, mas isso também não importa. A mentalidade das grandes cidades é muito diferente da do interior.

Acordei hoje com a noticia de que na madrugada passada morreram duas pessoas baleadas em Kenosha, Wisconsin, desta vez por um civil armado, um rapaz de 17 anos que acabaria preso. Em maio, ficámos atordoados com a morte de George Floyd estrangulado pelo joelho de um policia, por causa de uma nota falsa de 20 dólares. Jacob Blake, outro homem, foi baleado 7 vezes à queima roupa quando estava à guarda da polícia suspeito de violência doméstica, na noite de anteontem. Sobreviveu mas está hospitalizado e, segundo o seu advogado, paralisado da cintura para baixo. Os protestos voltaram às ruas da América. Em três meses de protestos, mudaram os nomes mas pouco mais. A cor dos envolvidos não é difícil de adivinhar. Floyd negro, Blake negro, Kyle Rittenhouse, o adolescente de metralhadora em riste, branco.

Segundo a comunicação social há poucas explicações da Polícia. Também da Casa Branca o silêncio é total. Até o Twitter do presidente está mudo. Mas há vozes que se fazem ouvir: os jogadores da NBA tomaram posição publica sobre o assunto. Já o tinham feito durante o confinamento e desde o recomeço da competição que nas camisolas de jogo se leem mensagens de solidariedade com o movimento Black Lives Matter. Uma forma de protesto considerada “inaceitável” por Donald Trump. Logo nessa altura, LeBron James, o melhor jogador, reagiu às críticas do Presidente. “O jogo vai continuar sem que ele o veja. Posso sentar-me aqui e falar por toda a comunidade do basquetebol, não nos podia ser mais indiferente”, disse. Ontem a tomada de posição subiu de tom: com a época na fase decisiva, em protesto pelo sucedido a Blake os jogadores dos Milwaukee Bucks recusaram-se a entrar em campo levando ao cancelamento dos jogos dos playoffs da noite. Agora está a época em risco. Ainda bem, porque a América, tal como a conheci, ou desejei que ela fosse, também está. Sobretudo se Donald Trump voltar a vencer.

Anne Applebaum é jornalista e colunista da Atlantic, autora de “Gulag, uma história”.

Recentemente na Atlantic escreveu um ensaio, que julgo deu origem a um livro que ainda não está à venda em Portugal “Twilight of Democracy” onde mostra como as elites nas sociedades, onde as derivas populistas venceram, estão assoladas por uma guerra civil, política e cultural. Alguns, dessas elites, até deixaram de falar uns com os outros. A América é um país profundamente racista, xenófobo e violento. É diferente da Inglaterra, da Hungria ou da Polónia, onde fenómenos semelhantes aos de Trump também vingaram. Ainda assim há factores que são comuns: o ressentimento com a classe política tradicional; a adesão de grupos intelectuais a esses populismos e a nostalgia de um passado que só na cabeça deles foi glorioso. Será este modelo de sociedade que desejamos para nós e para os nossos? Uma certa nostalgia do futuro com cheiro a bafio?

Acho que em Portugal e no mundo, ainda  vamos a tempo de arrepiar caminho.

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