Silêncio cúmplice

Por Carmo Rodeia

Em todo o mundo, perto de 50 milhões de crianças estão atualmente desenraizadas. 28 milhões deixaram as suas casas devido a conflitos para os quais não contribuíram minimamente, e muitas outras migraram na esperança de encontrar uma vida melhor e mais segura. 45% dessas crianças são da Síria e do Afeganistão.

Segundo o relatório “Crianças Desenraizadas”, publicado a semana passada pela UNICEF, existem 10 milhões de crianças refugiadas; 1 milhão de requerentes de asilo cujo estatuto de refugiado ainda não foi determinado; e um total estimado de 17 milhões de crianças deslocadas nos seus próprios países – crianças que precisam desesperadamente de assistência humanitária e de acesso a serviços essenciais.

Muitas vezes traumatizadas pelos conflitos e pela violência dos quais fogem, estas crianças enfrentam outros perigos pelo caminho, incluindo o risco de afogamento em travessias por mar, má nutrição e desidratação, tráfico, rapto, violação e mesmo de assassínio. Nos países pelos quais passam ou nos de destino, são muitas vezes alvo de xenofobia e discriminação. Para além da crueza dos números ficam outras certezas a partir deste relatório: uma criança refugiada tem cinco vezes mais probabilidade de não frequentar a escola do que uma criança não refugiada. E quando têm a oportunidade de frequentar a escola, esse é justamente o local onde é maior a probabilidade de as crianças migrantes e refugiadas serem alvo de vários tipos de discriminação, incluindo tratamento desigual, bullying e gestos racistas.

Em junho deste ano a UNICEF publicava o vídeo de Anna, a menina sem abrigo: uma menina vestida com roupas velhas, cabelos desarranjados e com um ar sujo, deixada propositadamente à beira da estrada, que se tornou invisível. Uns dias depois a menina foi vestida com roupas bonitas e, com um ar arranjado, foi deixada no mesmo local. Foram vários os que pararam a perguntar com quem estava, onde estavam os pais, etc, etc.

Quantas vezes ouvimos que «quem não se fizer parecido às crianças não entrará no Reino dos Céus»  (Mt 18, 3), e «quem colocar um obstáculo para uma criança cair, seria melhor ser atirado ao mar» (Mt 18, 6). Quando queriam afastar d’Ele as crianças, Ele reclamou: «Deixem vir a mim as criancinhas» (Mt 19, 14). (…)

“Penso nas muitas crianças esfomeadas, abandonadas, exploradas, forçadas à guerra, recusadas. É doloroso ver as imagens de crianças infelizes, com o olhar perdido, fugindo da pobreza e dos conflitos, e que batem às nossas portas e aos nossos corações implorando ajuda. O Senhor nos ajude a não sermos sociedades-fortaleza, mas sociedades-família, capazes de acolher, com regras apropriadas, mas acolher, acolher sempre, com amor”, disse o Papa Francisco já este ano numa das orações do Angelus, ao domingo, na Praça de São Pedro.

“Cada criança marginalizada, abandonada, que vive na rua a mendigar ou com qualquer tipo de expediente, sem escola, sem cuidados médicos, é um grito que chega até Deus e que acusa o sistema que nós adultos construímos”, declarou então.

Comovemo-nos facilmente com imagens que se tornam virais. Como a do pequeno Omrar Daqneesh, de 5 anos, o menino sírio da ambulância, ferido num ataque aéreo que atingiu a sua casa. Mas nem sequer vimos a imagem  do seu irmão, com o dobro da idade, que não sobreviveu ao ataque. E só soubemos da sua existência porque Ali era irmão de Omram. Que tal pormos fim a um silêncio cúmplice que torna tantas crianças invisivelmente vítimas?

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