Um livro que o Papa não escreveu

Telefonou-me um amigo responsável por uma série de colóquios que se realizam ao longo do ano numa Livraria da Baixa de Lisboa.

Disse que me enviaria um livro editado em português pela Gradiva e pediu-me que o apresentasse. O tema era “Corrupção”.

Fiquei a aguardar um volume substantivo. Era afinal pequeníssimo. Pus-me a lê-lo e a riscar sem piedade pois queria apanhar os aspetos essenciais. As pessoas têm uma exigência cada vez maior face  aos muitos livros que são lançados diariamente no mercado. Este, de nome “Corrupção e Pecado”, seguido de “Sobre a acusação de si mesmo” de Jorge Bergoglio, num único volume, parece a repescagem de textos que dificilmente superarão o muito que temos lido e ouvido do Papa, que todas as manhãs nos surpreende com a sua reflexão pessoal, a capacidade de síntese e clareza e o dom de dizer discursos teoricamente longos em muita poucas palavras.

Parece que estudou numa  escola de jornalismo, oratória, marketing, publicidade. Junta com a mesma naturalidade história, filosofia, teologia, moral, ascética e mística, para não falar duma abertura de alma e coração e da proximidade que estabelece com os seus “paroquianos”, estejam à distância a que estiverem do seu púlpito. E mais aquele jeito de se fazer entender aos que falam uma língua diferente em conceitos de vida, conceções políticas, linhas éticas, experiências religiosas, detentores de conceitos e preconceitos sobre a Igreja; os zangados com a história e com a fé e os azedos com a vida. Este homem com a sua história pessoal, a sua esperança e a sua missão, num tom de aparente  ingenuidade, chega ao mais fundo e definitivo do ser humano.

Santo Agostinho, Santo Inácio, Padres do Deserto, místicos da história, teólogos do Concilio Vaticano II, o povo – seu grande mestre – andam escondidos nos seus discursos e escritos, a dizer no século XXI o que parece uma linguagem arcaica de ritos espiritualistas ou discursos moralizantes.

Aqui trata-se de dois textos, ou melhor, três, do Arcebispo Bergoglio: um, sobre a corrupção e pecado, de 2005, preparado para uma assembleia diocesana, outro sobre a acusação de si mesmo (também de 2005) com recortes de Doroteu de Gaza (século VI)  destinado a jovens religiosos, e outro  repescado do Boletim de espiritualidade dos Jesuítas da Argentina, em 1984.

Que diz este homem de significativo de forma a ser traduzido para português e transformado num quase livro de bolso integrado pela GRADIVA com BREVE?

Está certa a coleção. É breve.

O prefácio de Paulo de Morais  cinge-se praticamente à primeira parte e sintetiza os pontos vigorosos que podem resumir-se nisto: ”o pecado perdoa-se, a corrupção não”.

E é aqui que Bergoglio se detém, partindo da corrupção como realidade esmagadora do nosso tempo. De todos os tempos. E lembra Catamarca na Argentina.

Em Portugal, sobretudo nos últimos tempos, todos os dias é ela, a corrupção, que nos abre as portas para as outras notícias, inspira investigações, vem de longe e de perto, faz do mundo mais que uma aldeia, é como o relâmpago e o trovão com a luz e o estrondo vindos não se sabe bem donde, que deixa a comunidade estonteada, surpreendida, perplexa, impotente, em estado de choque, a remexer nos bolsos a ver quanto lhe roubaram, a ouvir profetas verdadeiros e falsos da política, ou economia. Tem a  ver com dinheiro, poder, política, arte, cultura, religião.

“A  corrupção, – diz Bergoglio – é um processo de morte; quando a vida morre há      corrupção. Frequentemente noto que se identifica corrupção com pecado. Na verdade, não é bem  assim. Situação de pecado e estado de corrupção  são duas realidades distintas, embora intimamente ligadas entre si” (pag.14).

“Pecador sim, corrupto não”. O pecador experimenta e aceita a misericórdia do Pai que nos ama e espera sempre. A Bíblia está cheia destas histórias com a festa do encontro e do perdão.

“Mas, – diz  – quão difícil é que o vigor profético abra um coração corrupto. Está tão fechado na satisfação da sua auto-suficiência que não permite nenhum questionamento.

Sente-se confortável e feliz e se a situação se complica conhece todas as manhas para escapar”.

Bergoglio anota que a corrupção também atinge o religioso, em tom menor, venialmente, isto é, parcialmente. A palavra corrupção está  carregada de sentidos.

Não menos importante é a reflexão sobre a imanência e transcendência.

“Poderíamos dizer que o pecado se perdoa mas a corrupção não pode ser perdoada, simplesmente porque na base de toda a atitude corrupta há um cansaço de transcendência perante o Deus que não se cansa de perdoar. O corrupto ergue-se como suficiente: cansa-se de pedir perdão, tranquiliza e engana como escravo do tesouro.

“Cheira a podre. E quando uma coisa começa a cheirar mal é porque existe um coração fechado com adesão excessiva a um tesouro que o sequestrou.”

Com Henri de Lubac,  Bergoglio usa uma expressão que  irá retomar na exortação Apostólica Evagelli Gaudium  a “mundanidade espiritual”, um triunfalismo, ou um humanismo pagão, atenuado num sentido comum cristão. O corrupto auto embriaga-se numa antecipação da escatologia, como é o triunfalismo.

Quando um corrupto está no exercício do poder implica sempre outros na sua própria corrupção. E não deixa crescer em liberdade nem conhece a fraternidade ou a amizade. E é um prosélito, um apóstolo ou militante da sua causa, que convoca, faz doutrina.

O trabalho do Arcebispo de Buenos Aires faz uma análise das corrupções de Herodes o Velho, Herodes Filho, Pilatos, fariseus, saduceus, essénios e zelotes, cada qual no seu grau e nas suas funções. E sabe distingui-los de Zaqueu, Mateus, da Samaritana, Nicodemos e o Bom ladrão, que tinham algo no coração que os salvou da corrupção. Estavam abertos ao perdão.

A segunda parte do livro é uma reflexão dirigida a jovens religiosos, num estilo inaciano. Parecendo, pelo título, que defende estado de culpabilidade, propõe o olhar límpido  perante os outros.

Bergoglio  reporta-se a um artigo escrito em 1984: A acusação de si mesmo, para uma união dos corações na comunidade. Tem a ver com a imposição que cada qual faz a si próprio. E o erro de não olhar o todo  da família, mas  “a parte que me toca”. Daí o conflito que divide, parcializa, debilita.

Recorrendo a Doroteu de Gaza lembra que o acusar-se a si mesmo nada tem a ver com qualquer atitude de farsante que apresente a acusação de si mesmo como algo de pueril ou próprio dos pusilânimes. Trata-se antes da valentia de renunciar à maquilhagem para que a verdade se manifeste.

Depois, e continuando com Doroteu alude à suspeita, à divisão, à confusão, sobretudo quando não se trata de uma ideia mas de uma hermenêutica. E seguem-se 27 páginas de Doroteu de Gaza na segunda parte do livro: Faz-nos bem ler e não estão a 1400 anos de distância, como parecem.

Termino com as palavras de Doroteu que Bergoglio recolheu:“Perante tudo, pede a Deus que te dê um espírito desperto e lúcido para conhecer “o que é bom, o que lhe é agradável e o que é perfeito”.

Pe António Rego

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