Pelo padre José Júlio Rocha

Joaquim pegou, definitivamente, de cabeça. Assim o pensei eu, já com receio daqueles olhos raiados de sangue e raiva contra nada nem ninguém, só raiva, uma raiva absurda e sem razão de ser, motivada apenas pela vontade de expulsar para fora de si o labirinto de emoções negativas que foi acumulando ao longo de anos. O Joaquim mudou. Ou revelou-se?
Somos amigos de outros tempos, quando jogávamos futebol e o Joaquim rezava. Rezava no coro alto da capela e gostava muito do Benfica, embora nunca se metesse numa discussão por causa do futebol. Joaquim não discutia. Sofria – via-se mesmo – pelo seu Benfica, ouvia os relatos, via os jogos, guardava, religiosamente, recordações do seu clube, o bilhete do primeiro jogo que viu na Luz, o cachecol de um campeonato ganho, camisolas velhas e novas, um amor incondicional.
Naquele tempo o Joaquim era um coração bom. Não se metia em brigas, não discutia, era tímido e reservado, vivia no seu mundo feito de castelos de nuvens, porque adorava ler romances e ver filmes de aventura e paixão. Era um bom leitor. Quanto à política, nada a dizer dele, ou melhor, nada de ele dizer alguma coisa sobre política. Não se interessava, ponto final.
Joaquim tinha – também ele – ódios de estimação. Um deles eram as redes sociais, particularmente o Facebook, pomposamente por ele apelidado como “escória da mexeriquice”. Recusou-se, terminantemente, por princípio inalienável, aderir ao Facebook. Tudo aquilo lhe cheirava a coscuvilhice rasteira, desde o mostrar a comida no prato do restaurante italiano até às discussões inúteis, as opiniões enviesadas, toda a gente a expor despudoradamente a sua intimidade para gáudio da plebe. Punha-se, como os negacionistas das redes, a declamar lugares comuns, como “o Facebook veio aproximar os afastados e afastar os próximos” e outras quejandas e não se cansava de fazer troça dos pobres coitados que perdiam somas imensas de tempo mergulhados em tal alienação. Não conheci ninguém mais avesso às redes sociais em todo o mundo conhecido. Até 2018…
Alguém lhe fez saber havia uma página do Facebook muito interessante sobre o Benfica, com estatísticas, fóruns de conversa sobre o clube, opiniões bem abalizadas, partilha de preciosidades encarnadas. Com alguma relutância abriu uma conta só com essa página. Gostou. Muito. Pediu amizade a alguns colegas de página e, em menos de um mês, já tinha mais de 500 amigos. Como aconteceu esse fenómeno inesperado? Não sei. Mas em pouco tempo, já o Joaquim comunicava com o mundo, sentindo aquela sensação, extremamente agradável, sobretudo para quem é tímido, de poder desafogar à vontade por detrás do filtro do Facebook, assim como nós, quando vamos num automóvel e o condutor à frente conduz com uma irritante lentidão e vociferamos, damos sinal de luzes, perdemos a paciência porque o tejadilho do carro nos protege do mundo, como os vidros do telemóvel ou do computador. Foi isso! Foi essa sensação indescritível de proteção, de poder dizer o que nunca lhe foi permitido pela censura dos outros, o poder falar, vociferar por detrás do biombo da proteção. Ninguém o censurava. Era o poder nas suas mãos. Um narcótico, um vício que o atingiu.
Aos poucos foi deixando de ler, e isto foi uma metáfora: o Facebook tomou o lugar dos livros, da televisão (exceto o futebol), de algumas amizades, de uma vida, digamos, mais ou menos normal. Agora a política já lhe interessa mais até do que o futebol. É – convenhamos que dificilmente poderia ser outra coisa – um irremissível do Chega. Apaixonou-se por Ventura e acha que ele é a solução, um ser supra inteligente que até adivinha o pensamento dos portugueses, incomodados por estes 50 anos de corrupção – vá lá que, no tempo de Salazar, quem trabalhava e fosse sério não era incomodado – e que querem mudar as coisas. A sua página está absolutamente viciada: só lhe aparecem louvaminhas ao Benfica e adorações ao Ventura, vejam o que os algoritmos podem fazer, condicionando tudo para que o sujeito se envolva numa bolha onde só Benfica e Chega entram e preenchem todos os vazios.
Cheio de certezas absolutas, o Joaquim odeia com sangue nos olhos tudo o que seja gay ou aparentado, tudo o que seja cigano, migrante ou esquerdalha, portista, sportinguista ou paris saint-germainista que seja, tudo senão sejam aqueles dois pilares da sua existência, aqueles deuses que se consolidaram na sua mente indefesa. Vomita ódio na página, “posts” de uma frieza cortante, a adivinhar pústulas de ódio. Não conheço o Joaquim. Recadeiro, amargo, cheio de razão como um ovo de duas gemas, intolerante, com opiniões que, dez anos antes, ele próprio vomitaria com nojo. O que pode fazer um homem mudar tanto? E sobretudo, como é possível que dois milhões de portugueses vivam aventuras semelhantes? Vejo um amanhã cheio de alienados, zombies existenciais, a jogar à bisca de três diante da morte.