
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
Começamos pela ligação entre as festas do Espírito Santo e a celebração da autonomia. Estamos perante a maior celebração religiosa e cívica dos Açores. De que forma é que esta celebração define a identidade da população, digamos assim?
Sim, esta celebração que se faz sempre na segunda-feira do Pentecostes não acontece por acaso. Ela está, antes de mais, muito enraizada nas tradições culturais e religiosas dos Açores, tanto que esta celebração do Divino Espírito Santo, por altura do Pentecostes, era parte integrante da identidade açoriana. Tornou-se, por isso, um marco, não só na vida social e religiosa, mas também na vida política, assumindo esta devoção ao Espírito Santo. Desde longa data que, nos Açores, celebrando-se a festa do Divino Espírito Santo, foi marcando os passos das comunidades e não há açoriano que possa viver sem as festas do Espírito Santo, mas também não há açoriano que não se sinta envolvido. Devo dizer que a primeira vez, há muito pouco tempo nos Açores, participei nos 300 anos do Império, na Silveira, Pico – a ilha do Pico é provavelmente a ilha onde é mais significativa esta festa, talvez 600 ou 700 pessoas numa sala, onde, para além das cerimónias religiosas, se partilhavam as famosas sopas do Espírito Santo. E isto só para dar uma imagem do que significa. À mesa estavam estas centenas de pessoas, todas em mesas corridas, sem distinção de ninguém, onde estavam os políticos, entre os quais o presidente do Governo Regional, deputados, autarcas, gente de todas as instituições e associações, clérigos, também eu, e ninguém estava acima de ninguém, ninguém estava em mesa distinta, a única distinção que havia naquela grande sala era, sobre o palco, um pequeno trono com a coroa que simboliza o Espírito Santo, esta presença de Deus no meio. Portanto, não há açoriano que não viva esta realidade e de tal maneira se incultura que depois, quando saem, levam estas mesmas tradições e as fazem de igual forma ou até ainda mais apuradas.
Sente, portanto, que na região não há receio, problemas em manter esta relação, desde que saudável, entre o profano e o religioso?
Nem sempre foi fácil. Há aqui uma conceção muito comunitária, muito de expressão laical, do povo, o povo na sua inteireza, mas na sua complementaridade de pessoas. Ninguém pergunta quem é que vem às sopas. Há pouco falei numa sala grande, mas há lugares onde são salas pequenas que, vivendo durante a semana, durante os dias que precederam todos os dinamismos das festas do Espírito Santo, podemos imaginar quantas pessoas são envolvidas a oferecer, com esmolas, oferecem imensas vacas para as festas, tudo é grátis, e não tendo salas grandes, durante uma tarde inteira, passam centenas, milhares, há lugares onde são 5 ou 6 mil pessoas, que passam para comer tudo gratuitamente.
Portanto, há aqui uma dinâmica de solidariedade, de caridade, de partilha, que é muito expressão quase de um poder intrínseco ao povo e nem sempre estes relacionamentos com a hierarquia ao longo dos séculos foram pacíficos. Num sítio porque as festas eram demasiado exuberantes, se calhar eram demasiado profanas, mas também porque qualquer coisa poderia fugir ali ao poder. Nalgumas alturas, houve tentativas de controlo, enfim, não tão pacífico e dá-se conta que ninguém se saiu bem daquilo. Hoje há uma prática perfeitamente assumida pela Igreja desta colaboração. Os párocos dos lugares onde existem os Impérios, as sedes das pequenas irmandades, que depois gerem todas as dinâmicas das festas, vão benzer as ofertas, as carnes, em muitos sítios é assim. Mas depois também há dezenas de pessoas que fazem milhares de bolos ou de rosquilhas, como se chama, por exemplo, na Ilha do Pico, e isto tudo gratuito e distribuído gratuitamente. Há uma paróquia da Madalena que distribui, creio, umas 4 mil rodilhas, que são mais do que as pessoas que lá vivem, quem vai pode levar gratuitamente.
Hoje existe uma harmonia grande, aceitando que esta dimensão comunitária e espontânea da organização do povo, quase um poder, é de todos, é das pessoas, é dos clérigos, é do rico, é do pobre, é do mais culto, menos culto, e é tão bonito ver esta convivência espontânea, como era também a Igreja dos primeiros tempos, podemos também aí chegar, não é?
Falou ainda pouco da questão da diáspora. Esta marca identitária da devoção ao Espírito Santo é algo que também acompanha quem sai da ilha e que traz de volta também quando regressa?
Mesmo que quem vive nos Açores, quem cresce nesta dimensão, nesta simbiose entre fé e fé inculturada que depois se faz cultura – quantos dos nossos grandes escritores nos Açores escrevem apaixonadamente sobre as festas do Espírito Santo, mas também se envolvem nelas. Quem vive desde miúdo esta inculturação da festa, a religiosidade que se comunica uns aos outros, não a partir de hierarquia, mas da vivência das casas. Dou ainda mais um exemplo, quando é a preparação da festa, em que há coroação, nas casas recebe-se a coroa, reza-se o terço, convida-se os amigos, partilha-se o pão. Quem faz estas experiências e sai, já não consegue viver sem elas. Ir a uma das comunidades dos Estados Unidos, ou do Canadá, ou mesmo até no Brasil, Bermudas, ir a uma destas comunidades é o mesmo que estar nos Açores. As mesmas bandeiras, os mesmos símbolos, a mesma coroa, o mesmo cetro, as mesmas dinâmicas das sopas, como se chama essa grande refeição, mesmo os doces. Estamos em casa e a vida, esta simbiose entre a religião e a vivência cultural, solidária, de partilha é a mesma.
Tendo em conta a forte presença da comunidade açoriana no país, existe um receio de uma eventual deportação de imigrantes dos Estados Unidos?
Alguns políticos falaram nesta questão, afirmando que a ninguém faltará o apoio dentro dos Açores se voltarem. Nós temos açorianos que voltaram por opção. O açoriano é um pouco diferente, por exemplo, do continental, em que quem vai sonha regressar, na grande maioria; aqui, quando saíram, saíram por tragédias. Os grandes surtos de imigração surgiram por tragédias, ou vulcões, ou terramotos, destruição, e quando partiam não pensavam muito na casa que deixavam, nos bens que deixavam. Agora é natural que alguns voltem, que se queiram voltar a estabelecer aqui, e a esses, mesmo do ponto de vista político, se diz que a ninguém faltará apoio. Ainda não é muito relevante este regresso.
Sabemos que alguns vivem receosos, às vezes até evitando irem demasiado a lugares públicos, com medo de serem repatriados. Ainda não é relevante, mas há preocupação, sem dúvida.
A população está preocupada com a nova política da administração de Donald Trump e as repercussões que possa ter na base das Lajes?
É uma resposta que não é fácil de dar. E eu vou lhe dizer, há dois anos estive na Califórnia, em Turlock, e este último ano, faz agora um ano no verão, estive em Fall River. São duas zonas um bocadinho diferentes, também do ponto de vista político. Num lado mais a influência republicana, na zona de São Francisco, naquelas zonas agrícolas, com grandes vacarias, e muitas delas portuguesas. Aí há, claramente, um forte enraizamento republicano e, portanto, um forte apoio a estas políticas.
Os portugueses gostam das coisas bem feitas, sempre foram muito trabalhadores, muito esforçados, e, portanto, identificam-se com políticas… não sei como lhe chamar, mas encontrei ali uma grande simpatia e uma enorme aversão por tudo o que não era dessa linha. Mesmo até entre clérigos, nos Estados Unidos é assim, quem tem uma opção tem, exprime, diz e defende.
Do outro lado, não tanto, e a comunidade portuguesa está apreensiva. Mas, a certa altura, a uma pessoa até muito influente perguntei: “então, isto, como é que está?” E ele diz: “oh, senhor bispo, está bem, olha, eu votei Trump”. Portanto, não é fácil para nós, estando aqui longe, fazermos uma avaliação e os nossos imigrantes são um bocadinho esse espelho. Estão no meio do que é a sociedade americana, partilham e sentem que há um radicalismo, um estremar de posições que é cada vez mais convicto e, portanto, há uma sociedade dividida, mas participam dela e a vida económica, o trabalho continua. Não sabemos o que é que o futuro lhes trará, mas não é, para muitos deles, uma grande preocupação esta.
A pergunta era no sentido de se perceber se a população das Lajes está preocupada com a eventual saída, em definitivo, dos americanos da Base…
Nós tivemos milhares de americanos aqui a viver na Base das Lajes, agora está menos de uma centena. Teve um forte impacto quando as Lajes ficaram sem aquele exército permanente americano, tem cá alguns aviões, tem algumas pessoas, é uma base está sempre montada, se for preciso vir alguém, ainda se pensou ou temeu, digamos assim, que quando surgiu este conflito na Ucrânia que pudessem vir americanos, ainda vieram para ir umas delegações ver, mas depois não aumentou. A grande “tragédia” para a Terceira foi quando desmobilizaram esta presença americana, depois teve um período quase de negociações com outros países, nomeadamente com a China, que estaria eventualmente interessada, depois voltou-se a estabilizar, mas neste momento são poucos os americanos presentes, de tal maneira que não é uma preocupação para a ilha.
Que balanço faz dos pouco mais de dois anos como bispo de Angra? Já conhece o rebanho e o seu cheiro?
Olha, eu posso dizer que já conheço o rebanho e que já sinto muito mais hoje e sofro e caminho com este povo, com este rebanho, vamos dizer assim, com este grande povo de irmãos, este povo bom, que ainda continuo, como é evidente, a conhecer, mas que já agora conheço também tantas pessoas. Vou muito pelas ilhas, eu cheguei ontem aqui a casa, à Terceira, mas estive mais de 15 dias fora, em três ilhas, portanto é normal eu viver fora de casa e o balanço é sempre difícil de fazer, mas conhecer, posso dizer que já conheço quase todos os cantos das ilhas todas. Nalgumas delas fiz visita pastoral, portanto, foram mesmo os cantos todos. Depois, nós vamo-nos conhecendo e continuo a conhecer e a descobrir as características deste povo, também dos padres, das pessoas que colaboram comigo. Depois do descobrir, também já estamos numa fase em que, seja do ponto de vista pastoral, nas suas vertentes evangelizadoras, sociais, já se podem fazer projetos.
Temos em mão o grande projeto a 10 anos, até aos 500 anos da Diocese, que será em 2034, completamos 500 anos e vamos iniciar ciclos de três anos desta caminhada conjunta, gostaríamos de envolver o povo todo, o povo de Deus, não só o povo praticante, digamos assim, mas sermos capazes de ouvir todos, de dar atenção a todos, dar a voz a todos, que é o mais difícil nos tempos que correm. As pessoas estão envolvidas em muitas coisas, preocupadas com muitas coisas e nós não podemos pensar que temos de andar com as pessoas todas a vir ter connosco, mas encontrar formas também de evangelizarmos saindo. Depois, também, o sentir que já estamos nesta fase de programar e pensar nalgumas prioridades, nomeadamente esta dimensão mais solidária, tão presente nas festas do Espírito Santo, esta dimensão tão necessária de respondermos não só num dia de festa, partilhando tudo e estando com todos, mas fazer disso a nossa vida do dia-a-dia. As comunidades têm de ser muito mais fraternas, muito mais atentas, muito mais próximas, o Evangelho tem de ser como este pão ou esta carne ou este vinho que se partilha em dia do Espírito Santo e temos de o tornar constitutivo da vida das comunidades.
Do conhecimento que já tem das comunidades, porque estava a falar claramente de um apelo à solidariedade e à fraternidade, confirmou a ideia de que estamos perante uma das regiões mais deprimidas, mais pobres do país?
Os dados dizem-nos isso, nós temos mais de 28% de açorianos a viver em risco de pobreza, quase uma terça parte. Também aqui nos Açores, 8% da população está mesmo em situação de privação material severa e o rendimento médio é também calculado 10% abaixo da média nacional. Somos uma região onde o governo com as suas medidas de apoio tenta e tem conseguido desenvolver políticas que têm diminuído a gravidade da situação, mas mesmo com todas as IPSS e instituições que estão no terreno, há muito a fazer.
Subsistem bolsas de pobreza nalgumas zonas do território?
Temos, os Açores têm. As ilhas pequenas passam um bocadinho despercebidas, há pequenos focos, mas sobretudo as ilhas maiores. E aqui, na Terceira, bastante, mas muito mais, a ilha de São Miguel, a grande ilha de São Miguel, que atrai a todos.
E hoje em dia, para além destas dificuldades estruturais, temos a grande praga das substâncias que criam dependências, nomeadamente as químicas. Para além destas dificuldades estruturais, digamos assim, da pobreza, nós temos agora realidades novas. Também temos muitos sem-abrigo, mas sobretudo estas drogas sintéticas que vieram atirar muitos jovens para as cadeias, para as ruas, para a miséria, para fora das escolas.
Há aqui dramas que são também avolumados devido ao facto de serem ilhas, de serem mais fechadas, mas onde todas estas propostas novas chegam e chegam com violência. A Igreja também está, neste momento, a refletir isto seriamente, e a procurar também respostas, até olhando para as festas do Espírito Santo, com esta dimensão da proximidade, da preocupação, da partilha, da esmola que se dá sem esperar nada em troca. E lançar nas comunidades os frutos do Espírito Santo, o amor, a alegria, a partilha. Enfim, quanto nós podemos dar como contributo a esta carência social e esta pobreza estrutural que nós temos nalguns sítios.
Qual é que está a ser o papel da Igreja Católica junto destas populações mais desfavorecidas?
A Igreja, para já, é quem está mais metida ao lado das pessoas. Só pela própria presença, por tudo aquilo que representa de integrador nos seus diversos grupos, da catequese, de grupos juvenis, de pastoral juvenil, de famílias. Enfim, sentimos que nos é pedido muito aqui nos Açores.
Mas depois também, neste momento, seja com os serviços sociais de Cáritas, Serviço Diocesano de Caridade, Vicentinos, todos, estamos aqui a iniciar também alguns trajetos novos. Um deles prende-se com a grande preocupação de que não haja comunidades que não tenham gente atenta às novas pobrezas. As pessoas ainda estão muito a olhar para os subsídios, para as ajudas externas. Nós temos de introduzir dentro das células do nosso território, que são, por exemplo, as nossas paróquias, as nossas comunidades, mas que extravasem para além da vida restrita das comunidades e daqueles grupos organizados a quem se recorre no momento de miséria ou de pobreza, termos estruturas permanentes, como temos de catequese, como temos de liturgia. Se nós não assumirmos que é preciso construir isto, e é na área social que mais se pode ser Igreja evangelizadora, porque congregar pessoas que não estejam propriamente no número dos praticantes, envolver saberes, gente que perceba de assistência social, de psicologia. Estes grupos caritativos e sociais têm de ter uma roupagem nova.
Estamos a tentar fazer este caminho de reflexão, também de organização, até com outros saberes, com outras pessoas, até do mundo empresarial que nos estão a dar algumas achegas para este caminho, porque não podemos ficar de olhos fechados e simplesmente dizer, “ah, nós não temos pobres”. Isto é, todos comem, todos têm uma mesa, mas há muitas pobrezas hoje que não deixam evoluir e sair desta situação de carência e desta situação assistencialista, para não dizer subsidiodependência. Porque, às vezes, aquilo que se ouve na sociedade, que o povo diz e que alguns partidos proclamam e tornam a sociedade fraturada e uns contra os outros, que não pode ser, tem de nos alertar. Quem fala nas organizações destes grupos de proximidade, que têm de ter mais formação, mais capacidade, um voluntarismo mais formado, nós precisamos também, depois, perceber até que ponto é que o que nós fazemos, também do ponto de vista caritativo, ajuda as pessoas a desenvolver-se, a ser protagonistas do seu próprio desenvolvimento. E isto é atender, é amar, é eventualmente formar, sacrificar-nos, mas ajudar a que as pessoas assumam a sua própria história, porque, se não, segundo a terceira geração, sabe que se pode viver sem trabalhar: isto é terrível, é não ter esperança nenhuma na vida, é sentar-se na cadeira à espera que o mundo passe. Há aqui desafios muito grandes que estamos a agarrar, que estamos a refletir e que vamos levar para a frente, procurando sempre incluir todos.
(Ecclesia e RR)