A viagem de Jesus Barton Fink

Pelo Pe. Teodoro Medeiros

O estudo dos mitos gregos revela o quanto sejam arquetípicos: o que acontece nessas estórias acontece em quase todas. Estamos perante a estrutura da ficção no código ocidental. Bem se sabe que cada estória tem início e fim mas o importante é o que está entre esses 2 momentos (o que realmente fica na memória).

Na tragédia de Sófocles sobre Édipo, por exemplo, o desfecho do casamento com a própria mãe é anunciado de início: por essa razão, o leitor não percorre a obra sequioso do quê mas sim do como. Na Ilíada, a morte de Aquiles com uma seta no calcanhar é o fim da linha para o herói semi-divino… mas o sumo da questão é a razão para ele ter nascido com esse ponto fraco (que é de facto cativante).

E o protagonista vulnerável é mesmo um motivo (no sentido literário) clássico: a campanha publicitária poderia usar o slogan “a enriquecer narrativas desde a Antiguidade!” Porque voltar ao passado é sempre descobrir intuições soberanas. Os bons golpes de asa nunca soam a forçados e é mesmo por aí que se deve medir o seu valor: muito do que temos hoje peca por querer fazer (de)mais.

Quanta tensão se acrescenta quando o herói vê escapar entre os dedos o objeto da sua demanda? E se o seu amigo íntimo o trai já nas barbas do sucesso (no caso de Alcmeão, a própria mãe…)? Que valor tem que a missão seja suicida, como a de Jasão e os argonautas? E não será Medeia que mata os seus filhos (para vingar-se do marido) um êxtase da psicopatia?

Estes padrões antigos têm sido bastante estudados na área do cinema e não se reduzem a conteúdos. Repetem-se não apenas os elementos do enredo mas também a própria estrutura. Uma das obras mais conhecidas do género é “Writer’s Journey: Mythic Structure for Writers” de Christopher Vogler: uma descrição dos momentos que compõem quase todas as histórias (com muitos exemplos).

O protagonista começa por ter uma chamada à missão: deverá sair do seu mundo e aceder a outro, extraordinário, cheio de promessa e ameaças ao mesmo tempo; terá amigos, um mentor ou guia, opositores e uma amada que poderá ser o objeto da sua demanda. As suas motivações poderão ter de ser realinhadas e certo é que terá muitas dificuldades.

As estórias começam propriamente só com um movimento: o herói sai da sua tenda ou da sua concha existencial e põe-se a caminho, investindo-se claramente na perseguição do troféu (passa a haver um antes e um depois). Na maioria das vezes, a procura refere-se sempre a um valor: mata-se alguém pela vingança; rouba-se por um futuro risonho; prende-se para fazer justiça; trabalha-se para se ser o número 1.

Todas as obras de ficção implicam esta viagem: pode ser uma viagem sem mentor, pode ser uma reacção que vise restabelecer um equilíbrio perdido… mas haverá sempre objetivos (bem como momentos de quase, de distância e de perda aparente). O falhanço faz parte do menu, embora poucas vezes seja permanente (e sempre sujeito a leituras menos literais que o justificam… Jesus Cristo certamente).

Chegará o momento da prova suprema: poderá implicar uma revelação que surpreende a audiência sobre o próprio herói. Nada é nunca fácil e tudo vem sempre ao de cima, sobretudo os segredos mais obscuros. A crise do herói às vezes humaniza os antagonistas, dá-lhes um pouco de razão no seu ódio. Em absoluto, o herói pode ser um bandido: à audiência isso bem pouco importa (como prova a popularidade dos filmes de assaltos).

Quer isto dizer que todas as estórias seguem o mesmo esquema? Pelo menos um pouco, sim: é a chamada viagem do herói. É real a maldição dos contadores de estórias? Só para os maus. É aqui que entram os irmãos Coen, autênticos sacerdotes do storytelling cinematográfico dos últimos trinta anos nos estados Unidos (Coen significa sacerdote em hebraico).

Desde a estreia em 1984 com “Blood Simple”, os irmãos Coen distinguiram-se pelo apuro do despir-se de lugares comuns e construir uma espécie de cânone pessoal e heterodoxo dentro do cinema americano. Uma espécie de Indie avant la lêtre cujo percurso não tem sido sem mácula mas onde a originalidade obriga a tirar o chapéu e a descalçar os sapatos.

O olhar detém-se sobre pessoas que perseguem um objetivo: o marido ciumento, o assassino sem escrúpulos, os psicopatas desorganizados, os guionistas em dificuldades, o executivo que não cede aos caprichos das estrelas. Em “Miller’s Crossing”, o protagonista persegue um objetivo interior que nunca é declarado: passa de um patrão para outro e sobrevive para ficar sozinho (bem conseguida fuga à estrutura clássica).

Em “Barton Fink” John Turturo passa de sensação na escrita de teatro em Nova Iorque para um contrato milionário em Hollywood. A chamada à missão, as dúvidas, o desconhecido, a indefinição do papel dos outros atuantes… está tudo lá. Barton terá dificuldades de segundo plano e problemas de adaptação… mas a estrutura parece ser linear e seguir o clássico.

Mas é tudo uma ilusão: o misterioso amigo gigante esconde mais do que só segredos pessoais… o personagem secundário passa a ser mais relevante do que a viagem do próprio herói. E de tal modo que Barton Fink terá de reiniciar a viagem (uma nova) ao fim do filme. Sim, a ressurreição do herói é um tema clássico dos mitos: Jesus Barton Fink.

Barton Fink não é um filme realista ou verosímil: dispara contra Hollywood em momentos deliciosos mas exagerados (como qualquer comédia) e alimenta-se de mecanismos simples como o barulho que se ouve de um quarto para o outro. Mas a gestão das motivações dos personagens nunca é forçada: nunca se tiram coelhos da cartola.

Esse caráter de estória subvertida mas harmónica é que permite colocar num pedestal os 2 irmãos. Porque não se trata de improvisar “twists” para não fazer filmes imprevisíveis mas sim de usar as regras para ir além delas. De forma coerente, sem imitar as fórmulas que todos os outros seguem. E a visão de John Goodman a correr pelo corredor em chamas permanecerá para sempre.

Os grandes inspiram-se sempre no passado: veja-se o fascínio de Italo Calvino com as estórias medievais. Quanto aos irmãos Coen, em “Avé César” colocam uma frase que é duelo entre o realizador efeminado e o cowboy texano que mal sabe falar. Esta poderia ser emoldurada para comentar o que queremos dizer aos irmãos Coen tanto como o que eles têm para nos dizer:

-Would that it were so simple (“Would that it waa…re… so simple”).

 

 

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