Até gostava, mas não vai ficar tudo bem

Por Carmo Rodeia

Dois prédios acima do meu, do outro lado da rua, existe uma família que tem dois filhos;  o mais novo repete o 12º ano para melhoria de nota, embora não saiba exatamente se o pode fazer porque devido ao Covid só poderá fazer esse exame se a disciplina for especifica, isto é, necessária para entrar na faculdade eleita. A irmã, que ainda estuda e trabalha para ajudar os pais a pagarem as propinas, está em lay-off.

Pai e mãe, funcionários na área da hotelaria, conseguiram não ser ainda despedidos e estão em lay-off, um dos palavrões mais ouvidos nestes dias, mas pouco tranquilizador porque o lay-off é uma situação temporária e findo o período da sua duração pode não estar garantido o posto de trabalho, se as dificuldades da empresa não melhorarem. Não só pela idade, mas sobretudo por força das circunstâncias, certamente não terão grandes razões para colocarem nas janelas do modesto apartamento um daqueles arco-íris coloridos que entretém as crianças, nestes tempos de confinamento e que até uma marca de detergente já adotou  nos seus anúncios, a dizer #vaificartudobem.

Como esta família de Fátima haverá tantas outras, muitas delas em situação ainda mais problemática porque já perderam o seu posto de trabalho, já falta alimento para por na mesa e sobretudo esperança para o futuro.

Conheço empresários que não sabem como vão pagar salários aos funcionários já no fim do mês e quanto tempo se aguentam sem facturar. Tenho imensos amigos jornalistas, homens e mulheres da comunicação, altamente qualificados, que ou foram dispensados ou pura e simplesmente deixaram de facturar porque perderam mercado, clientes, salário, numa palavra ganha pão.

Seguindo a ciência dos números, a nova tirania do jornalismo pandémico,  22 mil empresas portuguesas já recorreram ao regime de lay-off para evitar encerramentos e despedimentos de trabalhadores.

Segundo o jornal Expresso há mais de 425 mil trabalhadores neste regime. O número ultrapassa o total de desempregados.

Só a TAP será responsável por cerca de 9 mil trabalhadores (90% do quadro de pessoal) neste sistema.

O Banco de Portugal fez previsões e, com base no cenário base, a taxa de desemprego subirá dos 6,5% de 2019 para 10,1% este ano, devido aos efeitos da covid-19 no emprego. E a normalização não será imediata: em 2022, a projeção do banco central é de que 8% da população ativa estará desempregada.

No mundo a situação é idêntica ou pior, pelo que emigrar também pode já não ser opção, como foi em 2009. Em Espanha, num mês, perderam-se mais de 830 mil empregos. Nos EUA quase 10 milhões de pessoas ou perderam o emprego ou estão numa situação absolutamente precária. O Finantial Times anunciava que o ritmo de perda de emprego ronda os 300 mil por semana.

O PIB nacional vai garantidamente afundar este ano para território negativo.

Como cristã quero ter esperança.

Acabo de ler “Il potere della speranza- mani che sostengono l´anima del mondo”, do cardeal José Tolentino Mendonça, um ebook publicado exclusivamente pela editora Vita e Pensiero para recolher fundos para a Clinica Gemelli,em Roma.

Só a capa diria tudo:  uma obra de Auguste Rodin, duas mãos direitas próximas uma da outra que se procuram para se apoiar, uma ideia que quase comove neste período em que a proximidade é proíbida.

“Hoje, precisamos de mãos, mãos religiosas e leigas que sustentem a alma do mundo e mostrem que a redescoberta do poder da esperança é a primeira oração global do século XXI”, diz o autor.

Confinados no isolamento, talvez possamos entender melhor o que significa ser uma comunidade, onde estamos, sem tocar nas mãos uns dos outros, mas tocando no coração. É tempo de uma maior intimidade com Deus, seguindo porventura o ensinamento do evangelista deste ano, Mateus, de nos abandonarmos à Providência.

“Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal” (Mt 6, 25-34).

Este é o sentido da esperança cristã. Do abandono diante do amor de Deus. Mas é difícil calçar os sapatos de quem tendo esta esperança se vê, de um momento para o outro, sem nada. Para si e para os seus. A minha vontade é dizer que vai ficar tudo bem. Mas será que devo? No máximo poderei dizer: vai ficar tudo diferente, mas eu estou aqui. Nós estamos aqui…

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