Crescimento do cristianismo: Entre epidemias e promoção da Mulher

Por Monsenhor António Manuel Saldanha

Passados pouco mais de três séculos da sua existência terrena, um império inteiro ajoelhou-se perante Jesus Cristo.

Não são totalmente claros os motivos e menos ainda o como foi possível passar-se de pouco mais de uma centena de hebreus cristãos, tantos quantos eram os cristãos do I século, a vários milhões no século IV depois de Cristo. Mas hipóteses fundamentadas existem.

A crise da religião “pagã” no mundo urbano foi um fator determinante. Muito mais abertos a novas ideias do que os povos que viviam nos campos, muitos cidadãos das cidades deixaram de ser “pios” observantes dos cultos aos deuses do panteão tradicional da religião romana e das suas assimiladas, quais eram as dos povos que integravam o Império. Aqueles cultos e credos não respondiam aos anseios mais profundos nem às grandes questões que os seres humanos ainda hoje se colocam, como a da vida para além da morte e como alcançar nela uma eternidade feliz. As tentativas de intelectuais como Celso e Porfírio de vencer o cristianismo com argumentos baseados na razão e na imponente herança cultural das filosofias grega e romana, são uma prova de como cedo se impôs nas classes mais instruídas de Roma.

Patrícios, burgueses, comerciantes e pequenos proprietários foram a segunda geração de cristãos logo após a dos hebreus convertidos por Paulo e pelos Apóstolos.

A impotência de Diocleciano e de Galério já no século IV de extirpar o cristianismo no que foram as últimas ondas de perseguições que lhe foram movidas, revela o quão disseminado e consolidado estava, mesmo em sectores decisivos da sociedade romana.

O testemunho de vida dos cristãos e o sentido dado pela mensagem cristã à existência humana, pesou na mudança radical da fisionomia religiosa predominante nos primeiros séculos depois de Cristo.

Um factor pouco conhecido foi o das epidemias. O Mediterrâneo do mundo clássico sofreu periodicamente de surtos epidémicos. As diferentes concepções de  dignidade humana que separavam o paganismo do cristianismo determinaram uma série de gestos humanitários e consequentemente um significativo aumento demográfico dos cristãos. Os “pagãos” não conheciam o conceito de “misericórdia”, ou de “solidariedade” com os mais pobres ou doentes. Quando Galério, então famoso médico, abandona Roma em pleno surto de epidemia no ano 161 d.C., o seu gesto é descrito por um histórico da época, como sendo próprio de pessoas prudentes, como não o eram, segundo esta mentalidade, os “galileus”, que não abandonaram à sua sorte a cidade. Era notória naquelas circunstâncias e em muitas outras, a ajuda que ofereciam uns aos outros os cristãos e também como a ofereciam aos não cristãos, um detalhe que não passou despercebido ao imperador Juliano que por querer bani-los, lamentava tais expressões de solidariedade.

Outra razão pela qual o cristianismo se expandiu, foi porque melhorou a condição das mulheres do mundo antigo.

Nas culturas clássicas era comum o desprezo pela criança de sexo feminino. Frequentemente eram abandonadas à nascença em número muito superior por relação às do sexo masculino. Platão e Aristóteles aceitavam essa prática e em parte por isso, como resultado, Atenas sofreu por séculos a falta de mulheres. Além disso, na Grécia como na Roma antigas, o aborto era perfeitamente aceite e difuso, o que provocava não poucas mortes prematuras de mulheres. Tanto o judaísmo como o cristianismo, proibiram essas práticas entre os seus  adeptos o que gerou a crítica de não poucos “pagãos” como a do historiador romano Tácito, que muito embora austero e de reconhecida cultura, imputou de superstição grosseira tal comportamento.

A convicção de manter unidos os matrimónios e de que fossem fecundos ou que pelo menos fosse totalmente proibida a prática do aborto, ditou um enorme crescimento demográfico dos cristãos.

Santo Ambrósio, num tratado sobre a Criação, explica aos cristãos a origem da dignidade da mulher recordando aos homens que não são seus patrões, mas maridos, que as mulheres não são dadas como escravas, mas como esposas e que eles devem reconhecer e retribuir o amor que elas lhes dão.

Nas sociedades clássicas foram raras as mulheres que puderam exercer alguma influência para lá das portas de casa.

Vivendo até então uma existência hoje só comparável à das mulheres nas sociedades islâmicas fundamentalistas, com o cristianismo foi-lhes reconhecida a igualdade de dignidade com os homens.

Percebe-se assim porque as mulheres foram protagonistas de grande relevância nos primeiros séculos do cristianismo e como não é difícil de intuir que seguramente foram as primeiras evangelizadoras dos seus respetivos maridos.

A caridade para com os mais pobres e para com os doentes e as responsabilidades confiadas às mulheres na primeira manhã do cristianismo, são notícias que nos chegam de um passado longínquo.

Os tempos de contingências ditadas pela epidemia em curso, são propícios a heroísmos ou a graves expressões de egoísmo e de medo. Por outro lado, sob muitos aspectos o evangelho ainda hoje, parece estar mutilado, a julgar pela persistência de tabus e preconceitos no que toca às mulheres.

Vencer, sem sair dos limites da prudência, a desconfiança e o terror do próximo que potencialmente me pode contagiar, seja sob que aspecto for e aproveitar novas portas que o atual magistério do Papa Francisco tem aberto às mulheres na vida da Igreja, são  oportunidades  para evangelizar de novo e para escrever no presente histórias de solidariedade e de comunhão, para lá dos terrenos da reunião e da reflexão.

*Monsenhor António Manuel Saldanha é secretário na Congregação da Causa dos Santos, em Roma

Scroll to Top