Meio-dia no último banco da igreja

Pelo padre José Júlio Rocha

Conheci o senhor Manuel há mais de vinte anos, quando ainda paroquiava em Santa Luzia de Angra. Embora não seja importante, é de bom-tom da minha parte informar que o senhor Manuel não se chamava Manuel e que este é um nome falso que lhe atribuo.

Se alguém nunca faltava à missa era o senhor Manuel e a sua senhora, sentados sempre no mesmo banco, no mesmo canto do banco, a participar religiosamente no ato sagrado. Se alguém nunca comungava era o senhor Manuel e a sua senhora. Ao fim de algum tempo criámos uma circunspecta amizade e, quando me senti mais à vontade, perguntei-lhe porque não comungava.

Respondeu-me que não era casado pela Igreja. Que fora casado com outra senhora, de quem tivera dois filhos. Que essa senhora, sua primeira esposa, tinha encontrado outro homem a quem entregara o coração e a vida, deixando o senhor Manuel numa triste e solitária depressão. A mulher com quem vivia agora salvara-o de se enterrar cada vez mais e era feliz com ela. Chegou a pensar na anulação do primeiro matrimónio mas não encontrou motivos e, no fundo, não a queria, até porque não se sentia com coragem para considerar nulo um casamento de onde tinham nascido dois filhos. Profundamente cristão, sabedor da sua situação irregular perante a Igreja, bem desejava ele comungar, como aquela mulher cananeia que só pedia para poder comer, como os cachorrinhos, as migalhas que caem da mesa dos filhos. Mas ele não podia.

Continuámos amigos até que troquei Santa Luzia por Roma, por São Mateus, pelo Posto Santo, por São Pedro.

Cerca de doze anos depois, eu sentado na secretária da sacristia de São Pedro e entra-me pela porta dentro um homem avelhentado, um pouco dobrado sobre si mesmo, cabelos a cair para o branco, rosto acinzentado pela doença. Era o senhor Manuel.

Contou-me que estava doente, em fase terminal, que os médicos não lhe davam mais do que dois ou três meses de vida, que já tinha tudo preparado para a sua partida, que partia em paz com o mundo e com os homens e só lhe faltava uma coisa, aquela que mais desejava: poder voltar a comungar, nem que fosse só mais uma vez. Dirigira-se a mim porque éramos amigos, apesar de já não nos vermos há muitos anos, mas eu conhecia a sua situação e certamente o havia de compreender. Fiquei comovido e combinámos a comunhão na missa do domingo seguinte.

Meio-dia em São Pedro. Igreja cheia. O senhor Manuel e a sua senhora sentados ao fundo da igreja, último banco, junto ao corredor central.

Um dos momentos mais intensos da celebração eucarística é quando o sacerdote levanta a hóstia e o cálice e proclama: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”. Como o centurião romano, a assembleia responde uma verdade inabalável, da qual ninguém escapa: “Senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e eu serei salvo”. Ninguém é digno. Não passamos, todos, de uns párias diante da grandeza e da beleza de um Deus que, tendo vivido e morrido pelos pecadores, continua, História fora, com o mesmo gesto de se entregar pelos pecadores. Ninguém!

Naquele momento olhei para o senhor Manuel. Estava de cabeça baixa e batia com as mãos no peito.

Chegou o momento da comunhão e o senhor Manuel aproximou-se, sem a esposa. Vejo-o diante de mim, mãos estendidas em concha, uma sobre a outra, a tremer ligeiramente. Os olhos vinham marejados de lágrimas e eu comovi-me pela segunda vez com o senhor Manuel. Com a maior solenidade da alma coloquei a sagrada hóstia na mão. Caíram-lhe lágrimas. Ele pegou na hóstia com a delicadeza e a emoção de quem pega numa rara pedra preciosa. Comungou com lentidão e regressou ao seu lugar, limpando as lágrimas teimosas do rosto. Tenho a sensação de nunca ter visto ninguém a comungar com tão grande devoção e humildade.

Já contei mais do que uma vez esta história. Numa dessas vezes alguém me interpelou, visivelmente incomodado, e disse-me que certos padres, como eu, estavam a semear a divisão, o demónio, dentro da Igreja e que há dogmas intocáveis, por mais misericordiosos que queiramos ser.

Respondi-lhe que era mais ou menos isso que os fariseus diziam de Jesus, para quem o sábado (instituição sacratíssima dos judeus) era feito para o homem e não o homem para o sábado.

Cerca de metade dos casamentos católicos acabam em divórcio. Cada vez mais gente recasada, católica como o senhor Manuel, é impedida de participar em qualquer sacramento, isto é, virtualmente excomungada por estar “em situação de pecado”, um pecado que não passou pela sua consciência, mas apenas pela lei.

O senhor Manuel morreu poucos dias depois. Nem imaginam como eu gostaria de comunicar com ele e perguntar-lhe, muito simplesmente, qual é o ponto de vista do Bom Deus a respeito disto tudo.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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