Olhos Doces num Dia Qualquer

13 de Agosto não terá sido o dia D de nenhuma pátria ou acontecimento transcendente.

 

Poucas coisas dignas de grande nota aconteceram nos dias trezes de tantos agostos de milhares de anos. Em 523 é eleito o Papa João I; em 1940 tem início a Batalha de Inglaterra; em 1960 a República Centro-africana torna-se independente; no ano seguinte tem início a construção do Muro de Berlim; em 2010, Michael Phelps ganha a oitava medalha numa só olimpíada; em 1917 Nossa Senhora não aparece aos Pastorinhos de Fátima: só a 19. Nesse dia, em 1944, morre o número 27018, num lugar chamado Oświęcim. Mais anónimo do que 27018 só, talvez, 27019. No meio de 1 100 000 mortos, um não passa de mais um. Oświęcim é a cidadezinha que os alemães rebaptizaram de Auschwitz. E 27018 é o número por detrás de um nome: Michalina Petrenko. Tinha treze anos. O dia treze de Agosto de 1944 era domingo. 1944 foi um ano bissexto. No dia 6 de Junho desse ano bissexto, as tropas aliadas invadiram as praias da Normandia. Michalina tinha uns olhos doces. Nunca saberemos se alguém lho disse.

Nem sabemos se ela gostaria de ser professora e ensinar línguas estrangeiras às crianças futuras, ou se tinha saudades da mãe. Nunca saberemos se ela se havia de apaixonar por um belo rapaz da cidade vizinha e ter três filhos, todos com os olhos dela. Nem sequer temos o direito de saber se ela morreu de fome, de frio, de medo, com uma coronhada na cabeça, um tiro na nuca, ou, mais simplesmente, com os pulmões queimados pelo Zyklon B numa câmara de gás, e o seu corpo, depois, cremado nos fornos industriais de Birkenau. Sabemos que ela começou a chorar em silêncio quando lhe tiraram a foto de prisioneira, depois de lhe terem amarrado um lenço que lhe tapou os lindos cabelos, entretanto cortados.

Auschwitz é um lugar sagrado, benzido pelo sangue e pelas cinzas de um milhão e cem mil pessoas humanas. Não é um campo de morte, não é um campo de concentração nem um campo de extermínio, onde se levou, quase à perfeição, a lei da Solução Final. Não é nada disso. É, tão só, o lugar onde a humanidade perdeu a voz. Como o Grito de Munch, que berra sem que nenhum som lhe saia da boca.

No dia 5 de agosto (oito dias antes de Michalina morrer) de 2014 (70 anos depois), visitei esse lugar. Sabia algumas coisas, nutria pesadas dúvidas sobre tudo aquilo: o como, o porquê, as raízes desse mal absoluto, ou até que culpas de quem; ou então, mais plausivelmente, até que ponto o homem é capaz de descer na escala da maldição premeditada. Saí de lá sem perceber nada daquilo. Apenas com uma dúvida fria: sem lei, sem Deus, sem consciência, sem outra coisa qualquer que dê ao homem um controlo vindo de fora, ele é o lobo do outro homem. Matar um homem como quem pisa uma formiga não é uma aberração: é uma espécie execrável de normalidade num mundo onde isso (não sei como) se tornou possível.

Thomas Mann, no seu idealismo, defendia uma Alemanha europeia: o espalhar dos valores, da moral e do saber da poderosa cultura germânica. Mas assistiu ao seu contrário: uma Europa alemã. O mesmo saber, a mesma amplidão científica, a mesma precisão de métodos e de técnicas, mas ao serviço do império da morte e do horror, da mais precisa, matemática, premeditada, calculada, qualificada aberração da história: Auschwitz e seus pares. Como foi possível é a pergunta a que não podemos responder, sob a pena de desculparmos o indesculpável e, inexoravelmente, como parece acontecer a conta-gotas pelo mundo, repetir a história.

Hoje celebram-se os setenta anos da libertação de Auschwitz… Os soviéticos, arvorados em libertadores dos judeus odiados no seu império, proclamaram pomposamente a liberdade a sete mil resíduos ténues de homens ainda vivos, o que restava do Lager. Desses, restam hoje trezentos, quase todos nonagenários, com histórias de terror e redenção que hão-de durar quanto a memória o permitir. Michalina tinha uns olhos doces. E umas lágrimas, salgadas de lágrimas, que dançavam neles.

Pe José Júlio Rocha

Scroll to Top