Primeira exortação apostólica de Francisco apela à renovação da Igreja

Papa diz que a mudança é “inadiável” e relança discussão sobre a conversão do papado.

O Papa publicou, hoje, a sua primeira exortação apostólica, a ‘Evangelii Gaudium’ (A alegria do Evangelho, em português), na qual defende uma renovação das estruturas da Igreja, incluindo a “conversão” do papado.

 

 

“Penso que não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo”, escreve Francisco.

 

O documento, primeiro do género no atual pontificado, sustenta a necessidade de proceder a uma “salutar «descentralização»” nas estruturas eclesiais, por entender  que “uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária”.

 

“Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios”, explica Francisco.

Num texto em que deixa vários apelos à renovação da Igreja, o Papa diz que isso implica permanecer “aberto às sugestões” sobre o seu próprio ministério, para que “o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização”.

 

“Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado”, acrescenta.

Francisco, o primeiro Papa em seis séculos a ser eleito após uma renúncia do seu antecessor ao pontificado, recorda que João Paulo II (1920-2005) tinha pedido que o ajudassem a encontrar “uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova” (encíclica ‘Ut unum sint’, 25 de maio de 1995).

 

“Pouco temos avançado neste sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam de ouvir este apelo a uma conversão pastoral”, destaca a ‘Evangelii Gaudium’.

“Exorto também cada uma das Igrejas particulares a entrar decididamente num processo de discernimento, purificação e reforma”, acrescenta.

 

Francisco escreve, a este respeito, que ainda não foi suficientemente “explicitado” um estatuto das conferências episcopais que as considere como “sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal”.

 

O Papa reflete sobre a “renovação eclesial inadiável”, pedindo que não se tenha medo de “rever” costumes “não diretamente ligados ao núcleo do Evangelho”, bem como de algumas “normas ou preceitos eclesiais”.

Francisco diz sonhar com “uma opção missionária capaz de transformar tudo”, para que toda a estrutura eclesial se torne “um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação”.

 

A exortação, que recolhe algumas das propostas do Sínodo dos Bispos de 2012, sobre a nova evangelização, destaca a importância da paróquia, exigindo que “esteja realmente em contacto com as famílias e com a vida do povo”.

O documento pontifício deixa um olhar particular sobre a ação da Igreja nas cidades, onde os católicos são convidados a “imaginar espaços de oração e de comunhão com caraterísticas inovadoras”.

 

O Papa alerta para a pretensão de “dominar o espaço da Igreja”, por parte de alguns dos seus membros, que acusa de “mundanismo”, antes de deixar um elogio aos “inúmeros cristãos que dão a vida por amor” e aos jovens que trazem consigo “novas tendências da humanidade”.

Francisco apela à superação do “clericalismo”, afirmando que a formação dos leigos e a “evangelização das categorias profissionais e intelectuais” constituem um “importante desafio” para a Igreja.

 

O papa aconselha, ainda os padres a usarem uma linguagem positiva e compreensível a partir da mensagem bíblica, propondo mesmo um “itinerário de preparação da homilia”.

“A homilia não pode ser um espetáculo de divertimento, não corresponde à lógica dos recursos mediáticos, mas deve dar fervor e significado à celebração” da missa e sublinha que a pregação não pode ser “puramente moralista ou doutrinadora”, alertando para as intervenções que se transformam “numa lição de exegese”.

 

“Isto exige do evangelizador certas atitudes que ajudam a acolher melhor o anúncio: proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não condena”, aconselha.

“Uma boa homilia, como me dizia um antigo professor, deve conter «uma ideia, um sentimento, uma imagem»”, precisa lembrando aos padres que “anunciem o amor salvífico de Deus que não imponham a verdade mas façam um apelo à liberdade”, caso contrário, as homilias não estariam “propriamente a anunciar o Evangelho”, mas algumas “acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas”.

 

Francisco deixa reparos aos que “sonham” com uma “doutrina monolítica defendida sem nuances por todos” e recorda que “a fé conserva sempre um aspeto de cruz, certa obscuridade que não tira firmeza à sua adesão”.

O Papa diz,ainda, aos sacerdotes que o confessionário “não deve ser uma câmara de tortura” e lembra o valor da “pregação informal que se pode realizar durante uma conversa”.

“Ser discípulo significa ter a disposição permanente de levar aos outros o amor de Jesus; e isto sucede espontaneamente em qualquer lugar: na rua, na praça, no trabalho, num caminho”, precisa.

 

No essencial, o texto retoma as principais preocupações manifestadas pelo Papa desde o início do seu pontificado, após suceder a Bento XVI em março deste ano, e fala numa Igreja “em saída” e atenta às “periferias”, bem como a “novos âmbitos socioculturais”.

O texto desenvolve o tema do anúncio do Evangelho no mundo de hoje, recolhendo o contributo dos trabalhos do Sínodo que se realizou no Vaticano de 7 a 28 de outubro de 2012 com o tema ‘A nova evangelização para a transmissão da fé’.

Ao contrário do que é habitual, a exortação não se assume como ‘pós-sinodal’ por ultrapassar o âmbito específico tratado na última reunião de bispos católicos.

 

Francisco afirma que os católicos tomam a iniciativa”, num “estado permanente de missão” para enfrentar os riscos da “tristeza individualista” no mundo de hoje.

Essa missão, acrescenta, origina “novas formas”, “métodos criativos”, uma “reforma das estruturas” e uma Igreja com “portas abertas”.

 

O Papa repete o desejo de “uma Igreja pobre”, “ferida e suja” após sair à rua, porque “uma fé autêntica – que nunca é cómoda nem individualista – comporta sempre um profundo desejo de mudar o mundo, transmitir valores”.

A exortação sublinha a necessidade de fazer crescer a responsabilidade dos leigos, mantidos “à margem nas decisões” por um “excessivo clericalismo”, bem como a de “ampliar o espaço para uma presença feminina mais incisiva”.

O Papa denuncia o atual sistema económico, preso a um “mercado divinizado”, e lamenta os ataques à liberdade religiosa”, em particular os casos de perseguição aos cristãos.

Francisco deixa claro que a Igreja não vai mudar a sua posição na defesa da vida e pede ajuda para as vítimas de tráfico e de novas formas de escravidão.

 

O texto percorre 288 pontos, divididos em cinco capítulos, e conclui-se com uma oração a Maria, ‘Mãe da Evangelização’.

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