Uma multidão de lágrimas na garganta

Pelo padre José Júlio Rocha

Todos os dias os jornais e telejornais a mandarem para fora números e casos sobre a temerária covid-19. Todos os dias mais mortos, mais infetados, os hospitais a rebentarem pelas costuras, os profissionais de saúde em pânico. Novas variantes que apareceram, novas variantes que vão aparecer, e elas, perturbadoramente, enfraquecem a eficácia das vacinas que, entretanto, não chegam sequer para as encomendas. A covid-19 é uma obsessão planetária, uma esquizofrenia apocalíptica, uma paranoia universal, um medo entranhado na alma do mundo.

Enquanto as economias vão estalando à pressão do confinamento, enquanto as empresas mais afetadas vão rebentando aqui e ali, enquanto, em Paris e no mundo rico em geral, estudantes e famílias vão fazendo filas brutais por um prato de sopa, enquanto os aviões estacionam ao vento, os hotéis criam bolor e os restaurantes congelam a carne, vamos assistindo a revoltas, a convulsões sociais e batalhas nas ruas. Muitos governos por esse mudo fora estão em pânico, de mãos atadas entre o confinamento necessário e a catástrofe económica anunciada. Nunca vi o mundo assim.

A guerra das vacinas veio mostrar – como se necessário fosse – a desumanidade dos mais fortes, as imperdoáveis desigualdades entre os países, os ódios que a fome gera. Enquanto uma dezena de países detém 75% de toda a vacinação mundial, 120 países ainda não viram uma gotinha sequer das almejadas vacinas. A União Europeia atravanca-se em burocracias dantescas, meses para a aprovação de uma vacina pela Agência Europeia do Medicamento, enquanto outros países avançam. Israel dá-se ao luxo de já ter vacinado 40% da população: um feito louvável, não fosse o crime de só agora chegarem as primeiras vacinas à população palestiniana, refém do regime israelita, com dois milhões de pobres relegados para um execrável segundo plano. Quem é pobre há de morrer sempre primeiro. É um destino tão velho como a humanidade: a lei da selva, inscrita no nosso ADN, dita que, em caso de pânico, não importa quem fica debaixo dos nossos pés.

Entretanto, e por incrível que pareça, vão pululando os negacionistas, os da gripezinha, os que rejeitam a vacina porque ela é uma cabala, porque ela pode alterar o nosso ADN, os que continuam a desobedecer descaradamente, pondo em risco a saúde e a vida de muita gente, os que brincam com a saúde e a morte dos outros, como se nada no mundo estivesse a acontecer.

Uma senhora, num dia desses, veio desabafar comigo, profundamente deprimida e em lágrimas. Não se conforma, tem sentimentos de culpa porque a mãe morreu no hospital, sozinha, sem o abraço dos filhos e dos netos, na solidão das luzes brancas de um hospital, porque a covid-19 não permitiu um último encontro.

Tenho um grande amigo, um amigo íntimo, sacerdote no Continente, com quem travei amizade há muitos anos. Em finais de janeiro foi apanhado pela doença. Não é velho e não tem grandes problemas de saúde. Mas a doença apanhou-o forte e levou-o ao hospital. O agravamento do seu estado clínico meteu-o ligado às máquinas de uma UCI. A luta foi titânica. Todos os dias um membro da sua família me ia informando do seu estado de saúde: às vezes melhorava, chegou a ser acordado, mas, entretanto, a doença agravou-se e começou a luta entre a vida e a morte.

Mandou-me uma mensagem a 27 de janeiro, antes de entrar em coma. Dizia assim:

Meu irmão. Provavelmente estou nos últimos momentos da minha vida neste mundo. Bendito corona que nos lembra a inutilidade supérflua e malfazeja da coroa de espinhos… Abraço-te, dizendo-te que, se assim Deus for servido, em breve estarei com todos os santos que nos precederam. Conheceste os meus altos e baixos. Esta quaresma gostaria de ter escrito a muita gente… A todos, até sempre. A ti, abraço-te no Céu. Lá rezarei por todos juntamente com José e Maria. Como será maravilhoso…

Morreu esta quinta-feira de madrugada.

Amanhã será um número nos nossos ecrãs. Um número a juntar aos outros na grelha do telejornal.

Partiu para qualquer lugar chamado Eternidade e deixou-me um pouco desfeito por dentro. É muito difícil aceitar a morte de um grande amigo, sobretudo num momento muito importante da sua vida. Tenho uma multidão de lágrimas na garganta, uma tentação de revolta contra esta maldição que se abateu sobre o mundo e nos dá um murro no estômago quando nos bate à porta de uma forma tão brutal.

Faz frio, vento e chuva há demasiado tempo nos Açores. Hoje tenho frio na alma. Um frio lento e inexorável, um frio silencioso e escuro, um frio que faz medo.

Nunca, como hoje, nos tempos modernos, o homem teve tanta necessidade de se unir, de ser solidário, de lutar por uma causa comum, de unir esforços e juntar forças.

Nunca vi a humanidade tão dividida e egoísta como agora. Estamos no purgatório, a um passo do inferno, a jogar à bisca de três à beira da morte.

Com licença… apetece-me rezar.

Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular na rubrica Rua do Palácio
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