“A crise que vivemos deve constituir uma oportunidade para a Igreja pensar o acolhimento e ter uma mensagem clara e positiva”

Uma Igreja família, que integre e acolha, sem preconceitos e que responda ás perguntas concretas das pessoas são os principais desafios dos tempos modernos.

Ricardo Neves é padre da Diocese de Lisboa e paroqueia em Santo António do Estoril. Está em São Miguel e para a semana estará na Terceira. É o orientador de dois dos três retiros para sacerdotes que se realizam este ano na Diocese de Angra. O Portal da Diocese ouviu-o na primeira pessoa sobre o acolhimento, as reformas da igreja, as propostas do Papa Francisco e a relação dos cristãos com a vida. Esta quarta feira participará numa ação de formação promovida pela Ouvidoria de Ponta Delgada sobre o Acolhimento paroquial.

 

 

 

Portal da Diocese (PD) – Vai fazer duas reflexões sobre o acolhimento. Que desafios se colocam à Igreja para fazer um melhor acolhimento?

 

Pe Ricardo Neves (RN) – Julgo que há dois desafios na nossa vida pastoral. O mais estruturante é termos uma cultura dentro da comunidade, em que as pessoas sejam acolhedoras umas das outras, por princípio. Que as assembleias não sejam anónimas e a experiência da fé não seja feita de forma tão individualista que estejamos todos a partilhar o mesmo espaço e não nos encontremos.

 

Este é o desafio mais estruturante por forma a que aqueles que vêm de novo, à procura, possam entrar num ambiente onde sintam que têm espaço e que são bem vindos.

 

Depois, há um segundo desafio que é termos uma abordagem acolhedora, personalizada e muito clara. Temos de ser capazes de oferecer o verdeiro conteúdo da fé. Da minha experiência, por exemplo, é muito importante acolher os pais que nos procuram para baptizar os filhos, os que se preparam para o matrimónio, ou pura e simplesmente, aqueles que nos procuram para uma simples ajuda material.

 

Mas há outros serviços: na catequese, onde muitos regressam para colocar os filhos e depois, há o “front office” que é o cartão de visita e que faz o acolhimento….

 

PD – Ou seja promover a verdadeira “cultura do encontro”…

 

Pe RN – Sem dúvida! Basta ler o Evangelho : “Jesus olhou para a multidão e sentiu compaixão por ela”. Isto quer dizer que mesmo perante uma multidão, consegue-se estar profundamente comovido com aquela situação particular, o gosto de estar com as pessoas. Este gosto tem de estar sempre presente na vida cristã. Nós não somos um balcão que oferece serviços, a quem as pessoas vêm mendigar um serviço. Nós temos que ter um gosto em receber as pessoas porque o que temos para dar nem sequer é nosso: é o amor incondicional de Deus.

 

PD – Trata-se de um despojamento que nos impele para uma nova evangelização, a começar dentro de casa, no sentido em que “as velas deixem de ser mais importantes do que a palavra , do que o amor de Deus”?

 

Pe RN – Sem dúvida. Quando entramos numa relação com alguém trata-se de começar uma aventura onde ficamos comprometidos, onde teremos conquistas e dissabores. Por isso, é mais fácil distanciarmo-nos, tornando tudo muito profissional mas pouco próximo do essencial. A pedagogia de Jesus é esta: a de conseguirmos envolver-nos com as pessoas de forma sincera mas exigente. O Zaqueus e o Mateus são exemplo disso. Jesus não os interroga sobre se roubaram ou não. Decide visitá-los, entra-lhes em casa, fala com eles, envolve-os e são eles que sentem que têm de devolver o que roubaram.

 

PD – O Papa também tem apelado muito a que se faça esse acolhimento. Não só dentro de casa mas saindo da casa para fora. A igreja está efetivamente preparada para partir para a periferia?

 

Pe RN – Sim.  A primeira e fundamental ferramenta é cada um dos cristãos. Que eles transportem a alegria do evangelho. Pessoalmente tenho tido essa experiência com os cristãos da minha paróquia: pessoas que têm um sentido evangelizador notável, sem qualquer proselitismo.

 

Pessoas que levam e trazem. Será um erro grave procurarmos encontrar metodologias pré definidas para partirmos par as periferias. Primeiro há que ter comunidades muito bem alicerçadas.

 

A Igreja já tem desenvolvido algumas práticas que podem servir de orientação.

 

Há um ano e meio, na  minha paróquia, venho desenvolvendo a pedagogia do primeiro encontro. Tenho as assembleias cheias, com muitos praticantes mas preocupa-me sobremaneira os que não estão dentro da igreja e que são meus paroquianos. Que proposta é que nós desenvolvemos? Pegámos na metodologia Alfa, que foi desenvolvida em ambiente protestante e que nós adaptamos à nossa realidade católica, que consiste num encontro a começar num jantar, onde se desenvolve um tema inicial da fé, e ainda no ambiente da mesa, discute-se. Depois surge um retiro….e as pessoas têm reagido muito bem.

 

O que mais tem marcado nas reações é o facto dessas pessoas, que estão na tal periferia, porque não são crentes ou já foram e deixaram de o ser, se sentirem pertencentes a uma família.

 

PD – Há muitos católicos que dizem que o são porque vão à missa. Os chamados praticantes são em maior número do que os verdadeiros cristãos, aqueles que estão sempre disponíveis para o outro?

 

Pe RN – O papa João Paulo II já tinha falado do ateísmo prático, ou seja, alguém que tem uma prática religiosa mas que depois está ausente do essencial.

 

PD – Sente isso?

 

Pe RN – Sem dúvida. A nossa cultura portuguesa é cada vez mais uma cultura secularizada, e por isso, tem vindo a empurrar os cristão para uma definição clara do que são. E isso tem motivado mais jovens a participarem. E os que entram e estão, são-no nas diferentes dimensões da vida: na escola, no trabalho, no namoro, na família. Está a ser muito desafiador, mas ainda subsiste um cristianismo de hábitos que seria bom corrigir.

 

PD – A média etária dos ditos praticantes continua a ser muito elevada?

 

PE RN – Sim, mas a minha experiência colocou-me recentemente um novo desafio e que se prende com a faixa etária dos 30 e 40 anos que estão a regressar. Porque levam os filhos à catequese e por isso sentem que têm de se envolver. Depois do frenesim da carreira, do trabalho, da casa, fazem como que uma introspeção e cria-se ali a possibilidade de reequacionar esse reencontro com Deus.

 

Mas, o importante, é que todos consigamos propor uma experiência cristã autêntica, com principio, meio e fim, de forma que a pessoa se reencontre….

 

PD – Qual é o fundamento dessa experiência?

 

Pe RN – Conhecimento sério e profundo do que é a proposta cristã. Não pode ser uma mera adesão emocional, já não chega. Em segundo lugar, deve ser uma experiência integrada no seio da comunidade, que valorize os sacramentos – o da eucaristia e o da reconciliação. Em quarto lugar, é preciso que a experiência seja materializada colocando os cristãos ao serviço…

 

PD – Apostar na formação pela ação?

 

Pe RN – Isso…têm de se comprometer.

 

PD – Hoje a mensagem cristã está mais exposta e ocupa mais páginas de jornais. Porquê, se ela não mudou no conteúdo?

 

Pe RN – Eu julgo que isso tem a ver com os meios ao dispor da comunicação. Eu hoje sei mais depressa o que o Papa disse no Vaticano do que o que foi dito pelo Cardeal Patriarca de Lisboa. Aqui joga-se a atenção dos meios de comunicação social.

 

PD – Mas isso tem a ver com a pessoa?!

 

Pe RN – Sim, mas mesmo o ministério papal nunca foi tão universal como hoje. Este Papa tem personalidade e trata a multidão da Igreja Universal como se fosse prior na sua paróquia. Isso dá-lhe um sentido de proximidade, de autenticidade e de calor, indiscutíveis.

 

Depois a própria comunicação social generalista, desde o primeiro minuto, gosta deste Papa.

 

Ainda o Papa não tinha dito nada e já todos o aplaudiam. Graças a Deus que temos uma comunicação social interessada pelo Papa pelas boas razões.

 

PD – Não corremos o risco do Papa ser a notícia e nos desviarmos do que é essencial?

 

Pe RN – Há esse risco, mas em teoria. Penso que o Papa é tão natural, nele nada é estratégico, é tudo muito genuíno e, sobretudo, diz só o essencial . E isso basta. Ele não perde liberdade para dizer o que pensa, o que sente e o que deve dizer.

Julgo que está no caminho certo.

 

PD – Que análise faz do momento que Portugal atravessa, sobretudo quando há cada vez mais pessoas a pedir ajuda à Igreja, como resposta mais próxima e mais imediata às suas necessidades básicas?

 

Pe RN – Somos, sem dúvida, uma mais valia, porque chegamos onde mais ninguém chega. Se não fosse a rede capilar da igreja a dar respostas humanas, imediatas e precisas, não sei o que seria.

 

Estamos numa situação difícil, mas esta é uma ocasião para a Igreja ajudar a refundar e a pensar o que somos como país.  Não é a questão financeira, é a nossa própria identidade cultural, a nossa maneira de entender a vida, de sermos solidários, de caminharmos em conjunto. Tudo isto deve ser uma oportunidade para a Igreja devolver a alma a este país, com menos distanciamento.

 

PD – É, aliás, nesse sentido que vai o estudo da Universidade Católica que dá conta de quanto maior é a instrução e a educação, mais individualistas os portugueses se tornam.

 

Pe RN – É muito preocupante!

Por aqui passa a evangelização, mais do que outra coisa. Penso que a Igreja tem de criar oportunidades para que as pessoas possam por a mão na massa e quando isso acontecer a ajuda chegará através de uma interação. É preciso que percebam a urgência e a beleza daquilo para que foram chamados.

As pessoas estão muito espartilhadas e pouco disponíveis para arriscarem.

 

PD – Por isso, também, estão mais vulneráveis e permeáveis a outras mensagens de espiritualidade…

 

Pe RN – Corremos esse risco, mas apesar de um certo anticlericalismo básico, as pessoas olham para a Igreja como uma realidade sólida e séria. Isso não quer dizer que estejam disponíveis para se envolverem e se aproximarem. Nós é que temos de criar essas oportunidades para que experimentem. Sobretudo, que encontrem respostas para as perguntas delas e não para outras. Às vezes dá a sensação de que nós falamos de coisas que não são as que realmente vão de encontro àquilo que são as preocupações delas. Portanto, o segredo é partir de baixo para cima e nunca ao contrário.

 

PD – O Papa Francisco interpela muito para dentro, na perspetiva da mudança, da regeneração da hierarquia.

 

Pe RN – Bom dividiria a minha resposta em dois pontos. Um tem a ver com a qualidade do nosso ministério. O Papa tem sido muito interpelante para dentro. Temos aí muito trabalho para fazer, nomeadamente no que respeita à clarificação de objetivos e de critérios.

 

Outro desafio passa pelas estruturas formativas que têm de ser capazes de gerar pessoas dentro desses critérios sem facilitismo, nem que isso seja feito à custa de uma redução do número de alunos nos seminários.

 

PD – O que é que isso significa?

 

Pe RN – No que respeita ao ministério sacerdotal, por exemplo, os documentos oficiais são muito exigentes. Mas é preciso que nas estruturas seja aplicado e seja coerente, porque os padres que se formam agora são os que vão formar a igreja nos próximos 30 ou 40 anos.

 

Depois, há um segundo aspeto, que tem a ver com a organização da igreja naquela que é a correlação entre as igrejas locais e a Cúria Romana, que desempenha o papel de pivot, como sinal da unidade.

 

O Papa tem tido dois tipos de preocupação. Por um lado, que a Cúria represente as várias sensibilidades mundiais dentro da igreja. Por outro lado, o Papa tem procurado que os bispos e conferências episcopais decidam a pastoral.

 

Para ser honesto, julgo que estamos a desbravar caminho, para podermos ir caminhando, descobrindo como vai ser esta relação para que seja feliz. A escolha não pode ser feita entre uma igreja que decide de cima para baixo e outra que toca a música ao sabor de cada realidade concreta. Tem de haver autonomia mas tem de haver interligação. O Papa quer fazer mesmo este caminho que será longo, certamente.

 

PD – Esse caminho também teve já um primeiro sinal com a realização do Sínodo em dois andamentos. Como é que vê esta prioridade à família?

 

Pe RN – Em primeiro lugar, o Papa percebeu que este tema é hipersensível porque mexe com o tecido global da igreja e vivemos muito sofrimento no que respeita à vida familiar.

 

Todo o cuidado, no pormenor e na clareza, será fundamental. Por outro lado, o Papa pretende que se intensifique os sínodos como a expressão da igreja. Eles sempre existiram mas, o que este traz de novo, é esta ideia de alargar e recolher o máximo de impressões.

 

Doutrinalmente, as fontes teológicas são muito precisas e por aí não me parece que haja grandes novidades. Outra coisa é a priorização deste tema. Este ano e durante os próximos anos. Não só por causa dos temas mais fraturantes mas também por causa dos que dizem respeito ao como educamos para a sexualidade, para o namoro, como suportamos a família, as crianças, etc.

 

Julgo que deste sínodo sairá a ideia de que a Igreja precisa de uma proposta clara que resolva coisas e não complique. Desde a área da sexualidade à dinâmica afetiva, passando pela realidade concreta de casamentos desfeitos, temos de ser muito claros e sobretudo temos de dar respostas mobilizadoras não no sentido da proibição mas da oferta de um caminho alternativo, que seja claro e de forma absolutamente positiva. Esta é a proposta do Amor de Deus.

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