A ortotanásia de Jesus

Que bebeu de facto Jesus na cruz. Mistura de vinho? Fel? Vinagre?

A primeira resposta: Não se sabe ao certo. A narrativa dos momentos em que se procura dessedentar Jesus parece ser, antes de mais, um desenvolvimento literário do Salmo 69:22: «Deram-me fel por alimento, e na minha sede deram-me a beber bebida salobra

O fel (רֹאשׁ, χολὴν) constitui um alimento feito de plantas amargas (losna, erva-do-fel, absinto, alenjo…), daí também poder chamar-se «veneno» (Dt 32:32; Jr 8:14; 9:14; 23:15). Quanto à bebida (חֹמֶץ, ὄξος), trata-se, no contexto deste salmo, de água com algum sal, de péssima qualidade, típica da Palestina. A referência ao Salmo 69 pretende apresentar o sofrimento de Jesus como «cumprimento dos Escritos [Sapienciais]».

Os Evangelistas dividem-se no tipo de utilização do Salmo: 1. em Mateus e Marcos, que «convertem» o «fel» em bebida, procura-se dessedentar Jesus duas vezes; 2. em Lucas e João, apenas uma.

  1. Mateus e Marcos narram que os soldados lhe deram de beber vinho misturado com «fel» (οἶνον μετὰ χολῆς, Mateus 27:34), feito de plantas amargas, ou com «mirra» (ἐσμυρνισμένον οἶνον, Marcos 15:23), uma planta aromática; porém, Jesus não o aceitou.

Depois, um dos que tinham ali ficado (não necessariamente soldados, mas civis que assistiam), deu de beber, embebida numa esponja, uma bebida chamada ὄξος («óxos»), erradamente traduzida por «vinagre»; trata-se, porém, da Posca, a mais conhecida bebida não alcoólica, ácida, dos cidadãos romanos, e especialmente dos legionários. Segundo Mateus, ao gritar Jesus em hebraico (língua já morta no seu tempo) «Meu Deus, meu Deus (‘Eli, Eli’), por que me abandonaste?» e pensando que chamava por Elias (que se supunha ainda vivo no estado intermédio do Paraíso), deram-lhe Posca, para que, provavelmente, Jesus não morresse de sede antes do espectáculo de ser salvo da cruz por esse profeta (27:48-49); segundo Marcos, alguns dos presentes até preferiam que se não lhe desse Posca, supostamente pela curiosidade de ver se Elias o salvaria também da sede (15:36). Em ambos os casos, Jesus tomou a bebida.

  1. Segundo Lucas, os soldados ofereceram-lhe Posca (23:36), não por compaixão, mas por sadismo, para que, adiando a sua morte, tivessem mais tempo para dele gozar: «Se és o Rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo!» (23:37) O evangelista João apresenta Jesus a dizer: «Tenho sede.» (19:28) Ou os (três) soldados ou os três companheiros de Jesus (a sua mãe; Maria, esposa de Clopas; Maria Madalena) lhe deram, então, Posca (ὄξους, 19:29) numa esponja. Nos dois casos, Jesus tomou a bebida.

Coloca-se, então, a questão: Por que recusou Jesus a mistura de vinho, mas bebeu a Posca, a bebida romana?

Após grande perda de sangue, durante e após a flagelação, o condenado sofria uma sede aguda, agravada pelo calor da hora da crucifixão, a «hora sexta», por volta do meio-dia. Como esta forma de execução se destinava aos piores criminosos, a intenção era agravar ao máximo o sofrimento. Aproveitando-se dessa terrível sede, os soldados «ofereciam» misturas de vinho, com efeito anestésico, não por compaixão, mas para prolongar, nos condenados, a capacidade de suportar a execução e, deste modo, o tempo da sua dor. Por esse motivo, também, Simão de Cirene tinha sido anteriormente obrigado a levar a cruz de Jesus.

Ora, Jesus não foi um super-homem, mas um Deus humano, fraco como nós (Hebreus 4:15), não amava o sofrimento nem o buscava masoquisticamente; recusou, como acontece na «ortotanásia», prolongar a sua dor com a mistura de vinho. E foi curiosamente também por essa razão que aceitou beber Posca: sendo uma bebida sem álcool, constituiu apenas um suave alívio da sede na aproximação ligeira da sua morte («cuidados terminais»).

O próprio Pilatos se admirou de ter morrido tão depressa, pelo que não lhe foram quebrados os ossos das pernas, costume praticado para acelerar, por asfixia, a morte dos crucificados, em véspera de Sábado, dia santo para os judeus.

Esta análise dá-nos uma perspectiva muito clara dos cuidados humanos que devemos ter com a saúde. Alerta, por um lado, para tratar com carinho as pessoas no seu sofrimento, especialmente quando estão de partida deste mundo; por outro lado, denuncia desnecessários prolongamentos de estados de doença incurável (conhecidos por «distanásia»), adiando desumanamente o acolhimento da morte.

 

Ricardo Tavares

In A Crença 3 e 10.10.2014

donamaat@gmail.com

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