A solidão não é “sozinhice”

Pelo padre Marco Sérgio Tavares

É importante saber estar só porque andamos nisto há um ano. Trespassamos previsões e todos os calendários. Ninguém se atreve a fazer previsões de futuro. Ninguém se atreve sequer a desenhar o que será de nós nesse tempo imediato ou até próximo. Juntos ou sós? Neste aspeto o género feminino leva um avanço porque “o género masculino não sabe hospedar esperas” (Erri de Luca).

Deixemos os géneros agora porque o dado certo é que em 2016 (não foi há tanto), um estudo da Universidade Católica concluía que 70% da população amostrada dizia não se sentir só. Recuando a 2014, um estudo do Instituto Nacional de Estatística afirmava que 25% da população com mais de 15 anos indicava sintomas de depressão. A depressão nem sempre é o sintoma ou o resultado da solidão, mas pode ser uma das causas.

Os tempos hodiernos colocaram no alfabeto aquilo que chamamos a “doença da solidão”. Importa saber o que é e quem a sente. A solidão não é uma doença para idosos. Se é certo que os filhos saem de casa, os netos crescem, há menor mobilidade, os amigos morrem, os companheiros partem… há também uma solidão escondida entre jovens e adultos. Há um escondimento atrás dos ecrãs, das redes sociais, nas festas, nos telefonemas, nas mensagens…

Se é certo que logo no Génesis a narrativa primordial refere que “não é bom que o homem (macho) esteja só”, vemos nos Evangelhos um Jesus quase que obcecado pelo imperativo de solidão depois dos banhos de multidão. Há teses de doutoramento sobre a solidão de Jesus cujos meandros não nos cabem agora aqui neste espaço. O dado é que Jesus procurou várias vezes estar só. O Homem do Mundo, das pessoas procurou estar só para orar, pensar, encontrar-Se Consigo. (Mc 1, 35; Mt 14, 23; Jo 6, 15). A solidão não é “sozinhice” no dizer do português do Brasil. Ela remete para intimidade que é sinónimo de silêncio, tranquilidade e serenidade.  A solidão de Jesus tem uma geografia, desde o Monte teofânico até à Cruz da solidão nuamente exposta.

Entre tanta agitação e comida diárias há quem passe dias sozinhos, sem alguém com quem falar frente a frente, sem um olhar ou o calor de um abraço. É aquele dizer repetido da doente que me diz em todas as visitas: “sabe sr.  padre… é esta solidão…” é o não ter palavra falada, sem toques, sem beijos, sem sorrisos.

Adivinha-se uma pandemia num futuro próximo: a dificuldade em socializar. No meio de tantas viagens que já fiz sozinho, reparei nos comboios, nos autocarros, supermercados e centros comerciais: quantas pessoas olham nos olhos das outras, observam o mundo ou veem quem está ao seu lado?

Creio firmemente que há uma solidão forçada e outra almejada. Nós somos uma necessidade de solidão. A necessidade de aprendermos a estar sós para que possamos nunca nos sentir sozinhos. A solidão é necessária, não como um fim, mas como meio. É no ermo onde nos encontramos, nos conhecemos, definimos, analisamos e avaliamos os medos, preocupações, alegrias, interesses e pensamentos que ora nos orgulham ora nos envergonham.

Na matemática os números primos são um ensaio de solidão dado que só podem ser divididos por si próprios ou por um. Na vida artística os monólogos dos palcos, a originalidade de uma letra, uma composição musical, a escrita de uma tese, a criação poética são tudo lugares de solidão.

Há uma solidão açoriana ainda por descrever. Somos mesmo ilhas. Numa diocese que quer fazer caminho juntos, como estamos presentes na vida uns dos outros? É diferente a solidão da Vila Nova do Corvo se comparada com a Vila Nova terceirense; duma Maia mariense com a homónima micaelense; o pequeno Mosteiro das Flores com os Mosteiros micaelenses; a Feteira da ilha azul com as Feteiras do Sul; a Calheta jorgense com a do Nesquim picoense; a Santa Cruz graciosense com a das Flores ou da citadina Lagoa… quanta solidão forçada e quanta desejada de coração aberto para aprender a entrega com a consciência de que nas diferenças somos iguais na pequenez. Somos mesmo ilhas…

Não é só porque é Quaresma também nos Açores. Não tenhamos medo de estar sós porque de Santa Maria ao Corvo somos solidários na solidão.

*O padre Marco Sérgio Tavares é colaborador do Sítio Igreja Açores ao sábado, na rubrica Tatamailau

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