Do racismo e outros demónios

Por Carmo Rodeia

Tenho de confessar que não tinha intenção de escrever sobre este assunto. Aliás teria sido mais oportuno, do ponto de vista jornalístico, se o tivesse feito imediatamente a seguir aos acontecimentos: primeiro o crime nos EUA, depois as manifestações em todo o mundo e agora os atos radicais de vandalismo nalguns lugares.

Mas ontem as campainhas voltaram a soar ao ouvir o novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas, falar sobre o tema do racismo.

“A luta contra a discriminação, qualquer que ela seja, racial, económica, cultural, tem de ser constante. O Evangelho, apresentado como forma de união de todos, das diversas culturas e línguas deste planeta, é um projecto novo”, afirmou o bispo de Setúbal.

Questionado sobre as recentes manifestações contra o racismo e a violência policial, com destruição e vandalização de estátuas, o presidente da CEP considerou que houve “exageros compreensíveis”, mas que não é desse modo que se resolve o problema. Antes é necessário “construir uma história nova”, em vez de procurar reescrever o passado, acrescentou.

A opção de fazer cair determinados símbolos da cultura, da política e da história, pode acontecer a qualquer momento e ser uma decisão de regime, assente numa questão ideológica e não é um crime, embora possamos concordar mais ou menos com atitudes desse género. Até porque podem ter subjacente uma tentação de negar a própria história, ou tentar apagar da esfera pública os símbolos que relembram essa história com a qual já não nos identificamos, e isso não é bom. A História não se apaga, embora possa ser reescrita de maneiras diferentes durante um determinado período de tempo mas não por todo o tempo. Mesmo assim, não se podem confundir atos políticos com atos de vandalismo como aqueles a que temos assistido, ao longo das últimas semanas, em vários países, incluindo Portugal.

Posto isto, gostava de lembrar que o direito à indignação é legítimo e que ela seja expressa publicamente também; mas o combate ao racismo faz-se com leis, com cultura e com educação. Como dizia há dias D. José Ornelas, ainda sem ser na qualidade de presidente da CEP, a propósito do Bairro da Jamaica e dos casos de Covid na sua diocese, enquanto o acesso a condições de  habitação condigna, emprego decente, transportes, escolas, hospitais e justiça não for igual para todos, existirão sempre problemas graves e estaremos sempre diante de racismo. Sobretudo,  se essas condições forem negadas a comunidades inteiras só porque são de cor, porque são de outras etnias ou são estrangeiros em busca de uma oportunidade de vida melhor. Estaremos sempre a lidar com a dicotomia pouco decente entre os de cima e os  de baixo; os mais e os menos privilegiados, sem que possamos estabelecer pontes de contacto entre os dois lados do muro. E ele nem precisa de ser efetivamente um muro físico, embora eles existam justamente para delimitar fronteiras entre mundos e pessoas que não se podem tocar.

A situação é mais grave quando esta narrativa alimenta o discurso político dos líderes de grandes nações,  como os Estados Unidos da América, que se arvoram ao direito de guiar o mundo.

Infelizmente a indignação gerada em torno da morte de George Floyd não será suficiente para ter consequências no afastamento de Donald Trump, pois o racismo e o seu discurso xenófobo têm sido, como dizia na semana passada na revista Visão José Manuel Pureza, o “alfa e o ómega” do presidente dos Estados Unidos, cuja essência assenta neste “excepcionalismo norte americano para guiar o mundo”, ou na “violência purificadora, segundo a qual a História é um conflito permanente entre o bem e o mal” ou, ainda, o regresso “dos good old times de um sistema com dois níveis incomunicáveis”, e é ouvido como profecia por parte dos norte americanos. O regresso da ideia de um presidente pela “lei e pela ordem”, num maniqueísmo aviltante, que separa sempre os bons dos maus, sendo que ele e os que o apoiam são os bons e todos os outros são os maus,  cala fundo numa América ignorante, pouco culta e que se entende como predestinada para se entregar a uma luta redentora contra todos aqueles que são considerados “inferiores” sejam pretos, índios, desempregados, imigrantes, ou outros quaisquer, muito longe da América das oportunidades que aprendemos nos livros de História.

Sinceramente, tenho dúvidas de que todos os que se sentem sufocados pela liderança de Trump sejam suficientes para o tirar da Casa Branca. E, em bom rigor, reconhecendo que já seria uma grande obra, receio que a acontecer isso não seja suficiente. Os norte americanos são profundamente racistas como somos todos nós, portugueses incluídos. E isso mede-se bem logo a partir da nossa incapacidade para discutirmos seriamente a História. E, então, preferimos dourá-la com clichés e dizer que não somos racistas. Assim sendo nem sei como é que o Chega já passou a terceira força política nas sondagens. Pois, mas isso não interessa. Até ao dia…

 

 

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