Querido líder: dá de comer ao meu ódio

Pelo padre José Júlio Rocha

Lina Vilkas. Alguém já ouviu falar desse nome? Não. Até porque o nome é fictício, mas a história é baseada em factos reais. Lina é uma miúda lituana de 15 anos, de Kaunas, a segunda maior cidade daquele país. Lina tem uma aptidão extraordinária para o desenho e cedo desperta a curiosidade dos artistas daquele país culto. Só que há um senão. Estamos em 1941, ano em que a União Soviética de Estaline, em plena guerra, anexa os Países Bálticos. Os crimes do regime Soviético começam então a sentir-se naquelas terras frias.

O pai de Lina é um ativista, que ajuda a fugir da Lituânia centenas de cidadãos inocentes do regime instalado, assinando passaportes falsos. Por esse crime, toda a família é deportada para a Sibéria, mãe e dois filhos, para cumprir pena perpétua. Lina, a mãe e o irmão mais novo partem, num vagão de carga, numa viagem de seis semanas, até Altai, sul da Sibéria, para cumprirem trabalhos forçados num gulag daqueles que conhecemos muito pouco, porque o regime soviético teve a habilidade de os saber esconder.

Durante a dantesca viagem, Lina tenta confortar uma mãe jovem, com uma menina recém-nascida ao colo. Mas a menina não aguenta o frio e as turbulências da viagem e acaba por morrer. A mãe agarra-se à filha, como se estivesse viva, chorando dia e noite, presa à esperança do desespero, enquanto o comboio avança, inexorável, para o seu destino final. Ninguém consegue, na carruagem, tirar a filha dos braços da mãe. Ela enlouquece. Os prisioneiros tiram-lhe a menina dos braços e, sem outra hipótese, atiram-na do vagão para a estepe. Quando chegam a Altai, a mãe diz aos guardas que quer procurar a filha que perdeu. O comandante incentiva-a a procurá-la, e, quando ela começa a andar, enlouquecida, o comandante prega-lhe um tiro na nuca. Lina assiste a tudo isto.

No frio inverno desse ano, Lina desenha, às escondidas, os horrores que vai vendo: as execuções sumárias, os espancamentos, a fome, o extermínio dos ucranianos, os trabalhos forçados, o frio, companheiro eterno dos deportados da Sibéria.

No verão de 1942, Lina e a sua família são mandados para a costa do mar de Leptev, no Ártico, onde neva no verão e onde, no inverno, a temperatura desce a cinquenta graus negativos. A mãe, antes de morrer no frio, confessa-lhe que o pai tinha sido fuzilado logo que eles saíram da Lituânia. Resta a Lina o irmão. Ela não desiste. Luta até ao fim, e escapa daquele inferno de gelo mais tarde com o irmão.

Os desenhos de Lina são uma prova do horror inenarrável dos gulags soviéticos, silenciados, porque Estaline teve um papel fulcral na vitória sobre a Alemanha Nazi. Mas a nossa consciência humana não nos permite esquecer os milhões de pessoas humanas que, inocentes, perderam a vida num dos mais horrorosos genocídios da história do século passado. Calcula-se que cerca de 28 milhões de pessoas passaram pelos gulags de Estaline. Terão morrido cerca de três milhões.

Estaline foi um louco, um obcecado, com um medo delirante de ser assassinado, mandou deportar ou executar até colaboradores próximos, mal desconfiasse que eles o podiam trair. A sua política do terror, as grandes purgas, as perseguições, fizeram do seu regime um notável exemplo do horror imperialista da primeira metade do século XX.

No início dos anos trinta, a Ucrânia, cuja metade oriental estava sujeita ao domínio soviético, revolta-se contra a política de coletivização violenta de Estaline. A repressão é devastadora: entre 1931 e 1933, a Ucrânia é sujeita à grande fome, o “Holomodor”, um genocídio que levou à morte mais de três milhões de ucranianos.

Ainda há muito para refletir e estudar sobre os regimes totalitários que avassalaram a Europa e o mundo no século XX. E convém fazê-lo sempre, reavivar a memória, porque a história é a memória do futuro.

Há, pelo menos, duas características comuns aos estados totalitários de extrema-esquerda ou extrema-direita: a primeira é que quem é diferente ou pensa diferente será, necessariamente, um inimigo a abater. Esmaga-se o diferente em nome de uma ideologia nacionalista e de uma limpeza étnica. O diálogo não faz parte da política, o ódio disfarça-se de heroísmo nacional.

A segunda característica é o culto do líder. O fascismo italiano, o nazismo alemão, o franquismo espanhol, o estalinismo soviético são o exemplo clarividente desta submissão das massas à imagem e à palavra do líder. Não é por acaso que todos esses líderes tenham sido caudilhos possuidores de um discurso inflamado e hipnotizador, elevados à categoria do sagrado, cuja palavra e mensagem penetravam nas massas em êxtase, cultivando o ódio e a violência. Não interessa a verdade: a verdade está na boca do líder, a verdade é o líder.

O que me assusta no meio disto tudo? É que estas duas características – o culto do ódio e o culto da imagem do líder – estão a recrudescer de forma desenfreada neste tempo que tanto se assemelha aos anos 30 do século passado.

Os exemplos estão aí, à vista desarmada. Nem é preciso ir muito longe…

*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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