“Ser Cristão na Terra Santa é um privilégio e uma vocação”

A dois dias do inicio da visita do Papa Francisco à Terra Santa, o Portal da Diocese entrevista o único guia espiritual português acreditado pelo Patriarcado Latino de Jerusalém.

Desde 2012 que é guia espiritual acreditado junto do Patriarcado Latino de Jerusalém, mas já conta na bagagem com várias visitas anuais desde 97. O Pe Jacinto Bento vive em Angra, é pároco em São Pedro de Angra do Heroísmo e é licenciado em Ciências da Educação. Nesta entrevista garante que apesar de viverem em minoria, os cristãos da Terra Santa são “fortes” e vivem em liberdade

 

 

Portal da Diocese (PD)- O Papa Francisco vai visitar a Terra Santa. Que significado tem esta visita?

Pe Jacinto Bento (PJB)- Antes do significado da visita do Papa, veja-se o significado da expressão, “Terra Santa” que aparece em Zacarias: “O Senhor possuirá Judá como sua porção na Terra Santa e escolherá ainda Jerusalém” (Zc 2,16). O versículo refere-se à terra em que Deus se revelou aos patriarcas, aos profetas (…) e de acontecimentos bíblicos importantes. A Terra Santa é a terra que Jesus nasceu, percorreu, viveu, morreu e ressuscitou. A terra onde começou a pregação do Evangelho, onde nasceu a Igreja e que continua a atrair todos os anos milhões de fiéis das religiões abraâmicas. As fronteiras da Terra Santa não estão estritamente definidas. Se para uns abrange territórios localizados em Israel e Palestina, para outros, inclui também a Síria, o Líbano, o Egito e a Jordânia. Depois de São Pedro, os únicos papas que visitaram a Terra Santa, começaram sempre pela Jordânia: Paulo VI (4 – 6 de janeiro de 1964), S. João Paulo II (20 – 26 de março de 2000), Bento XVI ( 8 – 15 de maio de 2009).

PD- Mas há algum significado especial nesta visita, um ano depois do inicio do Pontificado?

PJB- O grande significado, da Peregrinação do Papa Francisco à Terra Santa, é o diálogo inter-religioso e ecuménico, como ele próprio afirmou a 5 de janeiro de 2014: “O objetivo principal da minha visita será comemorar o encontro histórico entre o papa Paulo VI e o Patriarca Atenágoras”. Tudo aponta para o diálogo: os quase 50 anos depois da promulgação da Declaração Nostra Aetate (28-10-1965), pelo papa Paulo VI, sobre a Igreja e as Religiões não cristãs; o lema “ut unum sint” (que todos seja um); o programa da visita, para além das visitas de cortesia da praxe, valoriza os encontros inter-religiosos e ecuménicos; o séquito papal, constituído por um rabino e um sheikh; por um cardial ligado ao diálogo ecuménico (Kurt Koch), outro ao diálogo inter-religioso (Jean-Louis Tauran) e pelos Patriarcas Católicos Orientais; o anúncio da beatificação do Papa Paulo VI, duas semanas antes da viagem de Bergoglio; o Hino e Poster oficiais da visita papal. Além do Hino e Poster oficiais nota-se uma grande e profunda preparação para a visita: a poucos dias da chegada do papa a Amã, Lideres Muçulmanos e Cristãos emitiram um apelo conjunto ao diálogo e entendimento, “Decálogo Cultural”, patrocinado pelo Príncipe Hassan da Jordânia e o Cardeal Tauran para o Diálogo Inter-religioso; o Livro escrito pelo então Cardeal Bergoglio, juntamente com o Rabino Abraham Shorka, foi traduzido para o Hebraico em vista da chegada do Santo Padre.

PD- Está a referir-se ao entusiasmo que todos estão a colocar nesta visita…
PJC-  O Knesset (Parlamento de Israel), no dia 13 de maio de 2014, num evento sem precedentes, homenageou S. João XXIII, por ter ajudado a salvar milhares de judeus durante o holocausto, quando era Núncio apostólico na Turquia; no Estúdio do Franciscan Media Center em Jerusalém, a menos de duas semanas para a chegada do Papa Francisco e o Patriarca Bartolomeu, três importantes figuras se reuniram-se para falar sobre este encontro histórico. O Patriarca Grego Ortodoxo Teófilos III, o Delegado Apostólico em Jerusalém e Palestina e Núncio Papal em Israel e Chipre Arcebispo Giuseppe Lazzarotto e o Custódio Franciscano da Terra Santa Padre Pierbattista Pizzaballa; o próprio Patriarca Ecuménico, “Primus inter Pares”, Bartolomeu que se vai encontrar com Francisco diz: “É viva a nossa esperança e fervorosa a nossa oração para que o encontro com o papa Francisco fortaleça a estreita relação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa”. Numa conferência de Imprensa em Ramala, segunda-feira, 19 de maio de 2014, Dom Fuad Twal, Patriarca Latino de Jerusalém, anunciou que os preparativos para receber o Papa foram quase todos concluídos em Amã, Belém e Jerusalém.

PD- De que forma ela pode contribuir para uma melhor compreensão da presença cristã em todo o globo?

PJB- Esta visita do Papa à Terra Santa pode contribuir para uma melhor compreensão da presença cristã em todo o globo na medida em que Francisco é um Papa carismático, de grande humildade, do diálogo e da comunicação, como foi dito acima, leva na bagagem a força do Evangelho e o poder da oração, bem como peritos do diálogo ecuménico e inter-religioso. O bom resultado, desta visita, será sem dúvida, um modelo a aplicar em todas as zonas do globo onde há conflitos religiosos porque sem o diálogo nunca mais haverá entendimento entre as nações e daí que a visita, em si, é um forte apelo à paz.

 

 

 

PD- É o único guia espiritual português acreditado pelo Patriarcado Latino. Como vê a vida dos cristãos nesta zona tão importante mas tão insegura e tão pouco livre?

PJC- Eu sou um dos Guias Espirituais da Terra Santa, acreditado pelo Patriarcado Latino de Jerusalém. Por um lado, vejo a vida dos cristãos desta zona tão importante, não como uma desgraça, mas como um privilégio e uma vocação, porque quando se peregrina pela Terra Santa, sente-se melhor as palavras de Paulo VI: “junto à História da Salvação, existe uma Geografia da Salvação” e vive-se o que afirmou Bento XVI: “A Terra Santa foi chamada de quinto Evangelho, porque nela podemos ver e tocar a realidade da história que Deus realizou com os homens”. Por outro lado, também há desafios: a coexistência das diferentes igrejas católicas; o diálogo ecuménico com os outros cristãos; o diálogo inter-religioso com os judeus e muçulmanos; condições económicas em que alguns vivem e também o movimento de emigração dos cristãos. Por isso, é um dever dos cristãos de todo o mundo ajudarem as comunidades da Terra Santa a viverem a sua vocação e a cuidarem dos lugares santos, para que aquela terra continue a ser de pedras vivas e a possamos visitar para testemunhar e fortalecer a nossa fé.

Permita-me que discorde, completamente, quando diz “nesta zona tão insegura e tão pouco livre”. Já, estive vinte vezes na Terra Santa, em grupo e sozinho, viajei de Metula (fronteira com o Líbano) a Eilat (Mar Vermelho), mas nunca senti qualquer insegurança, sinto-me mais seguro do que nos Açores, sempre fui respeitado, bem acolhido e bem tratado por todos. É óbvio que é necessário um passaporte para mostrar nas fronteiras e no aeroporto, como em qualquer país civilizado. Há completa liberdade de circulação (comboios, metro de superfície, uma das melhores redes viárias do mundo e táxis), de expressão (Israel é o único país democrático do Médio Oriente), de religião (os judeus têm as suas sinagogas, os muçulmanos as suas mesquitas e os cristãos as suas igrejas) e de culto com três dias santificados (sexta para o islão, sábado para os judeus e domingo para algumas denominações cristãs). Os cristãos que vivem na Terra Santa e os que lá vão em peregrinação podem manifestar publica e livremente a sua fé, sem nenhuma restrição. Exemplo disso são as muitas procissões de vias-sacras diárias pelas ruas de Jerusalém, é a Procissão de Ramos, é procissão da vigília de Quinta-feira Santa entre outras. Além do mais, os sinos das torres das igrejas, todo o dia tocam, bem como o adhan dos minaretes muçulmanos, ás vezes ninguém se entende. Os clérigos, de qualquer denominação cristã, podem usar veste talar, sem qualquer problema. As Igrejas têm escolas (das melhores) e universidades a Universidade Pontifícia de Belém, é uma das mais famosas da Terra Santa porque abre as suas portas a cristãos e muçulmanos (multirreligiosa e mista), hospitais, entre outros. Mais liberdade religiosa não pode haver, mas logicamente, sempre dentro do respeito mútuo!

PD- Os cristãos na Terra Santa são perseguidos. Vivem muitas vezes em situação de grande tensão. Há alguma medida que possa inverter a situação?

 

PJB- Os cristãos na Terra Santa não são perseguidos, nem vivem em situação de grande tensão. São “um pequenino rebanho” que para além de viverem no meio de duas maiorias, muçulmanos e judeus, nem sempre se dão bem entre si, sobretudo onde há condomínio dos lugares santos que são regidos pelo “Status Quo”. Em 1948, a população cristã da Palestina era mais de 10%, atualmente a percentagem de cristãos na Terra Santa não ultrapassa os 2%.

Os cristãos da Terra Santa formam um mosaico de comunidades. Em primeiro lugar existe uma grande diversidade de confissões cristãs: ortodoxos e católicos (ambos com ritos diferentes) que juntos formam a grande maioria dos cristãos da Terra Santa, maronitas, armênios, sírios, coptas, etíopes, anglicanos, luteranos e diversos grupos evangélicos. Em segundo lugar, não existe grande diversidade de origem e contexto sociocultural como também, diferenciação linguística. Nas regiões cristãs da Terra Santa, a maior parte fala árabe e vive na sociedade árabe da Jordânia e Palestina; um número crescente de cristãos na Terra Santa, de diferentes origens, vive dentro da sociedade judaica de Israel e falam hebraico.

As Igrejas acima enumeradas têm os seus patriarcas, (Greco-ortodoxo, Arménio-ortodoxo e Latino-católico) ou representações patriarcais porque em Jerusalém não podem viver mais do que três patriarcas. Os patriarcas e a Custódia (Franciscanos) têm muito prestígio na Terra Santa e dão muita proteção aos cristãos. A título de exemplo, os cristãos que não têm documentação para passarem de um estado para outro podem obter uma autorização dos seus superiores religiosos, nomeadamente pela Páscoa e Natal.

PD- Em zonas onde os cristãos são minoria, geralmente o seu cristianismo é mais robusto no sentido de que tem de ser mais forte e vivido de uma forma muito intensa para superar as dificuldades. Sente isso?

PJB- Senti isso de uma maneira muito forte quando passei a Páscoa de 2013, na Igreja Mãe de Jerusalém. A começar pelo Domingo de Ramos, primeiro pela manhã, no Santo Sepulcro com as Igrejas que tem o condomínio da Basílica e depois à tarde com os Católicos Latinos na Procissão de Ramos, desde Betfagé, descendo o Monte das Oliveiras, atravessando a Corrente do Cédron, entrando pela Porta dos Leões até à Igreja de Santa Ana onde o Patriarca Fouad Twal deu a bênção. Era uma multidão de trinta e cinco mil fiéis, entre eles alguns peregrinos, mas a maioria esmagadora eram cristãos jovens, de escolas católicas, representantes das diferentes paróquias, com os seus estandartes, da única Diocese Latino católica de toda a Terra Santa, Jerusalém. Durante todo o seu percurso testemunharam, impressionantemente a sua fé com cânticos e orações, tudo acompanhado com os mais variados instrumentos, entre gritos e aclamações. Outro momento que deu para perceber a robustez do cristianismo na Terra Santa foi na vigila de Quinta-feira Santa, na Basílica do Getsémani, literalmente cheia, com as leituras, cantos e orações no dia, na hora e no local dos acontecimentos, seguindo-se uma procissão com archotes até S. Pedro in Galicantu. A julgar pelo que vi e senti, quer num caso quer no outro, são cristãos de grande autenticidade, sem preconceitos, sem medo de afirmarem a sua fé, apesar de estarem em minoria. Por isso, em Fátima, D. Fouad Twal convidou os portugueses a peregrinar à “Igreja Mãe” para “fortalecer a sua fé” e ajudar as comunidades cristãs, que representam cerca de 2/3 por cento da população em Israel e Palestina e cerca de 4 por cento na Jordânia.

 

 

PD- O papa Francisco tem pedido à Igreja para partir em missão ao encontro. É possível que os cristãos da Terra Santa o possam fazer em condições mínimas de segurança?

PJB- Sim. É possível aos cristãos da Terra Santa também partirem em missão, em condições de liberdade e segurança. Inclusivamente, os cristãos palestinianos deslocam-se para todo mundo a fim de venderem produtos (terços, presépios, cruzes …) nas paróquias. Concretamente, no Natal passado (2013), eles estiveram em paróquias de Lisboa, Faro e Angra do Heroísmo onde venderam muitos produtos e deram testemunho da sua fé. Tanto mais que eles têm uma fé muito viva, mas por outro lado, é preciso que eles permaneçam na Terra Santa porque são pedras vivas que custodiam e cuidam dos lugares santos, para que a Terra Santa não seja um museu, mas uma Igreja viva, como têm pedido os líderes cristãos.

 

PD- Há quanto tempo é guia nestas paragens?

PJB- Desde 1997 que venho organizando e acompanhando peregrinações para a Terra Santa, mas como guia espiritual credenciado pelo patriarcado latino de Jerusalém, só comecei em 2012, com grupos dos Açores e do Continente.

 

PD-  Qual foi o maior obstáculo ao seu trabalho até hoje?

PJB- Durante as minhas viagens nunca assisti a nenhuma manifestação, demonstração ou qualquer sinal de insegurança, nunca tive qualquer obstáculo, nem em fronteiras, nem em aeroportos, tudo tem funcionado na perfeição: desde a segurança, aos serviços, aos itinerários escolhidos (sempre que entendo ou preciso altero), aos autocarros, aos motoristas, à relação com peregrinos de diferentes proveniências, nos percursos ou hotéis (encontramos muitas vezes os mesmos), com os palestinianos, com os judeus, com os vendedores, com os militares ou polícia, tudo gente acessível e afável, sempre pronta a prestar uma informação. Todos acolhem muito bem os peregrinos e esforçam-se por os ajudar a sentir-se em casa porque a Terra Santa é património de todos. Sem exagero posso afirmar que a Terra Santa é um destino religioso cada vez mais procurado porque ali se cruzam todas as fés e culturas.

 

PD-Acredita que há condições para a paz nesta zona do mundo?

PJB- O meu grande desejo é que haja paz em todo o mundo e duma maneira muito especial na Terra Santa e em Jerusalém que é património da humanidade e Santuário das religiões abraâmicas. Creio que depois do diálogo ecuménico e Inter-religioso da visita papal, nada vai ficar igual porque os problemas políticos na Terra Santa não estão dissociados dos religiosos. Um entendimento religioso é uma janela de paz que se abre para o Médio Oriente e para o mundo. Digo com o Patriarca Latino de Jerusalém, em 13 de maio de 2014, em Fátima: “Esperamos que o Santo Padre, com o seu bom testemunho de simplicidade, de humildade e oração, seja um exemplo para nós”. D. Fouad pediu ainda que rezássemos por “todos os habitantes” da Terra Santa, “cristãos, judeus, muçulmanos”.

PD- Qual a notícia que gostaria de ouvir depois da saída do Santo Padre da Terra Santa?

PJB- Que os responsáveis político-religiosos estavam sentados à mesa do diálogo e da reconciliação.

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