Será que sabemos o que é o amor?

Por Carmo Rodeia

Escrevo este Entrelinhas entalada entre o Dia de São Valentim e o Dia das Amigas. Para quem não é açoriano este dia poderá fazer pouco sentido, mas esclareço já que se trata da segunda quinta-feira das quatro que precedem o Carnaval. No arquipélago há a tradição de fazer dessas quintas-feiras os dias dos Amigos, das Amigas, dos Compadres e das Comadres. E depois lá vem o entrudo, com muitas malassadas e bailinhos, uns satíricos outros a convidar para um pé de dança, até à quarta-feira de cinzas. Confesso que hoje me apetecia estar com as minhas amigas. Mas aqui, no continente, do que se fala é do Dia dos Namorados.

De manhã, quando vinha para o Santuário passei por muitas montras e todas elas estavam repletas de corações, de rosas vermelhas (dizem que simbolizam a paixão!) disto e daquilo, convidando à compra de um objeto para oferecer à pessoa amada. E eu, que cada vez estou mais do contra, comecei a perguntar-me se sabemos verdadeiramente o que é o Amor. Se o amor se vende e se compra. Se se ama mais quando se materializa esse sentimento pela oferta de coisas. Ou se as ofertas são apenas a expressão de um sentimento…

No meio de tanta interrogação veio-me à cabeça aquela notícia que chocou Portugal inteiro, na semana passada, quando se soube que um homem assassinou de uma só vez a ex. companheira, a ex. sogra e depois a filha, terminando a história macabra com o seu próprio suicídio.

No dia 21 de janeiro deste ano o jornal Público noticiava que Portugal tinha avançado meio caminho no combate à violência doméstica. E, afirmava que, segundo o relatório de um grupo de peritos que avalia a aplicação da Convenção de Istambul — o compromisso dos países do Conselho da Europa para a eliminação da violência doméstica e de género-, Portugal tinha dado passos significativos contra a violência doméstica, aplicando a Convenção de Istambul. Mas as falhas são várias e ainda há muito trabalho a fazer, pois o que está no papel nem sempre é cumprido na prática.

Entre os alertas ficava este: a necessidade de eliminação dos entraves a que as mulheres denunciem a violência de que são vítimas e a necessidade de que as queixas dêem origem a acusações, de que estas se convertam em condenações e de que as condenações sejam adequadamente punidas.

Em 2017 morreram 20 mulheres vítimas de violência dos companheiros, em relações de intimidade. Em 2019 já foram mortas 10.

Certamente que estas mulheres, num dia qualquer de São Valentim, receberam uma flor daqueles que, um dia, as violentaram e as destruíram, pondo fim à sua vida. Também sabemos que a violência começa cada vez mais cedo, ainda nas situações de namoro, apesar da troca de rosas e de outros objetos e juras de amor eterno.

O que é que está, então, a falhar? Não há quadros legais perfeitos e as leis carecem sempre de ser melhoradas, mas têm sobretudo que ser cumpridas. Não há políticas públicas suficientemente abrangentes, mas as que estão definidas têm que ser executadas e consolidadas. Não há sistemas completos, mas os que existem têm que funcionar de forma articulada e consistente.

Em nenhum lugar da Bíblia encontramos mandamentos tais como: “respirarás”, “comerás”, “beberás água” ou “comprarás”. Mas Deus não só ordenou que amássemos como fez deste o maior mandamento de todos: Amar – a Deus e ao próximo (como a ti mesmo).

Amar é ser vulnerável. É deixar que o outro veja quem somos, ainda que isso nos constranja, a nós e a ele. Amar é colocarmo-nos no lugar do outro. É atendê-lo em todas as suas necessidades; completá-lo em todas as suas insuficiências; ajudá-lo a caminhar e com ele construirmos um caminho. Quem ama não finge, nem faz de conta. Ao tornarmo-nos mais vulneráveis sentimo-nos de facto amados porque, só quem permanece ao nosso lado quando nos vê como somos, é que nos ama realmente. Quando nos sentimos amados como que nos despimos: despimos a alma, o coração, os sonhos, desejos, os medos e fraquezas. Por isso, o amor é um adversário do nosso egoísmo, da nossa independência, da nossa autossuficiência…

António Lobo Antunes disse uma vez que só há uma forma de não sofrer na vida que é não amar. Mas seríamos mais felizes? Mais completos?

Cito quase de cor o poema de um poeta de cabeceira, José Tolentino Mendonça, “Da verdade do amor”.

“Da verdade do amor se meditam/relatos de viagens, confissões e sempre se excede a vida/ esse segredo que tanto desdém guarda de ser dito/pouco importa em quantas derrotas te lançou/ as dores, os naufrágios escondidos/com eles aprendeste a navegação / dos oceanos gelados/ não se deve explicar demasiado cedo/atrás das coisas/ o seu brilho cresce/sem rumor”.

Nada disto se compra ou se vende. Pelo menos nas lojas por onde passei.

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