Vulto açoriano esquecido

Por António Pedro Costa

No passado dia 12 de dezembro, bem poderia ser celebrada a memória da irmã Joana de Santo António, freira do Convento de Santo André de Ponta Delgada, da Terceira Ordem da Penitência, que faleceu com fama de santa, de acordo com os relatos do Padre José Clemente e de Frei Agostinho Montalverne.

O que tem de especial esta freira, que nasceu no dia de natal do ano de 1653 na freguesia da Ribeira Seca, da Ribeira Grande, para que mereça ser recordada, depois de todos estes anos no esquecimento mundano? Ela era, nem mais, nem menos, irmã de Madre Teresa da Anunciada, que depois da morte da mãe, Dona Maria do Rego Quintanilha, tudo fez para amparar a filha mais nova da família, cuidando desveladamente dela para que entrasse numa ordem religiosa, mesmo contra a vontade de alguns dos seus irmãos.

Foi graças ao virtuosismo da irmã Joana, que Teresa procurou imitá-la nos seus retiros de oração no quintal da sua casa, onde de joelhos e de mãos postas buscava entabular colóquios ascéticos ou nas visitas que fazia à Ermida da Madre de Deus ou à Senhora do Guadalupe do convento no começo da vila.

Também foi Joana de Santo António quem incentivou Teresa da Anunciada, já clarissa, a promover a devoção ao Senhor Santo Cristo, que se encontrava esquecido numa das ermidas da cerca do Convento de Nossa Senhora da Esperança, desenvolvendo uma forte devoção por aquela imagem de Cristo, no passo Ecce Homo, passando a dedicar grande parte do seu tempo à sua veneração.

“Minha irmã, disse Joana a Teresa, aquele Senhor é milagroso, porque a estampa que levei tem obrado muitos prodígios; e é grande dor estar aqui às escuras e sem veneração. Hoje é quarta-feira de cinzas, e eu tenho um pouco de azeite, haveis de tomar à vossa conta alumiá-lo nesta quaresma. Ide pelos dormitórios, pedi pelo amor de Deus que vos dêem uma gota de azeite para alumiar o Senhor. Algumas vo-lo hão-de dar; e as que não o derem dar-vos-ão em que merecer e oferecereis ao Senhor essa mortificação”.

Estava o Senhor sem lâmpada e Dona Joana, com santa singeleza e igual devoção, prendeu um copo de vidro com uns cordéis que lhe então supriu a falta da lâmpada. Logo na mesma noite se viu o Senhor alumiado e pela manhã foi Teresa correndo os dormitórios e pedindo a esmola do azeite, ficando toda aquela quaresma a Santa Imagem com luz.

A Irmã Joana, que vivia uma reconhecida e preciosa experiência mística, entrou no Mosteiro de Santo André no dia 28 de abril (1683?), depois de ter sossegado o seu coração por ter conseguido contra ventos e marés e ultrapassando todas as dificuldades, dada a insuficiência de meios materiais, que a sua querida irmã de sangue Teresa ingressasse no Convento da Esperança, em 21 de novembro de 1681 e concretizasse um sonho de criança de ser freira.

Apesar de Joana de Santo António se recolher no convento como fâmula, por sua expressa vontade, passou a servir a Deus naquela clausura e durante os primeiros meses andava como extática e totalmente absorta nos sentidos, tal era a felicidade em se ter retirado do mundo para melhor servir o Senhor. Andava descalça, repartindo o pão às religiosas, e depois recolhia-se no coro baixo, onde ficava em adoração e êxtase, num estado de total arrebatamento e contemplação mística muito frequentes, causando admiração das monjas que a observavam.

Foram muitas as ações prodigiosas que se realizaram durante a sua vida, graças às suas heróicas virtudes, ao parentesco tão chegado com Madre Teresa da Anunciada, a diligência e cuidado com que promoveu entrada desta na vida religiosa, e ter sido ela o primeiro instrumento que o Senhor escolheu para o culto da sua imagem com a invocação de Ecce Homo, mostram-nos como Joana de Santo António desde a sua infância deu mostras do uso da razão e ainda desde tenra idade começou a apresentar a sua inclinação para as coisas do alto, face aos exemplos incutidos pelo virtuosismo de sua mãe. Pedia insistentemente para ir frequentar as igrejas, ouvir missas, assistir aos ofícios divinos e exercitar todos os atos de piedade e de devoção que podia.

Apesar de naqueles idos tempos, o ambiente religioso ser muito intenso na generalidade da população, estes primeiros fervores da alma inocente de Joana eram tão evidentes e transcendentais à vista dos familiares e vizinhos que, muitas vezes ela era encontrada em oração mental, em copiosas lágrimas ou em profunda ascese, sempre acompanhada de uma devota imagem de Cristo crucificado.

Dos relatos que se conhecem da sua vida consta que ela foi muito exercitada no amor de Deus, vivia uma vida de extrema pobreza, muito humilde e caritativa, que os seus êxtases eram muito frequentes diante do Santíssimo Sacramento, que os seus jejuns eram contínuos e as suas penitências e a sua vida austera eram tão ordinárias na frequência, quanto extraordinárias no rigor, lutando com a fraqueza e debilidade do seu corpo, até ficar exausta de forças que caía por terra.

A Irmã Joana de Santo António não viveu dentro do Mosteiro mais do que ano e meio, e face às suas austeridades e pasmosas penitências encurtaram-lhe a vida terrena, tendo percorrido com agigantados passos no caminho da perfeição e obtido em vida muitas manifestações de merecimento do quanto conseguia alcançar de Deus, em favor dos que a ela recorriam.

Chegado o tempo que Deus a chamou para si, para a cumular dos prémios das suas gloriosas fadigas, deu-lhe a padecer as mesmas dores da morte de Cristo, tendo experimentado em si tormentos que se iniciavam às quintas-feiras à tarde, até às 3 horas de sexta-feira, martírio com que foi purificando a sua alma, num penoso sofrimento que mostrava bem a sua aceitação e valentia de espírito, que durou até ao dia 12 de dezembro (1684?), véspera da festa de Santa Luzia, falecendo às 3 horas da tarde daquele dia. Fora baptizada em 2 de janeiro de 1653 na Igreja de S. Pedro da Ribeira Seca.

Repartiram os seus pertences como relíquias, sendo entregues a Madre Teresa da Anunciada umas disciplinas de cinco rosetas, uma bola de cera cravada de ponta de vidro, um cilício largo de ferro, uma cadeia de fuzis e uma cinta de vergas de ferro, que chagava dos braços até à cintura, cujas “prendas” ela estimou com a maior veneração.

Deus realizou muitos prodígios, em testemunho da santidade de Joana de Santo António, sobretudo por intercessão daquela serva de Jesus, com recurso às suas inúmeras relíquias, muitos deles devidamente registados por escrito. A própria Madre Teresa da Anunciada recorreu à sua falecida e bendita irmã, num momento de grande aflição, orando: “ó minha amada irmã, se vós quiserdes, bem podeis valer-me do céu muito melhor do que o fazíeis na terra”, obtendo, assim, a graça da cura da doença de que padecia.

Foi também Joana de Santo António admirável no dom da profecia, com que vaticinou muitos acontecimentos futuros, que foram guardados para memória e fé das suas virtudes, tendo acabado a vida com sinais evidentes de haver conseguido uma coroa gloriosa.

A Irmã Joana de Santo António é um verdadeiro vulto cristão que é secundarizado e ensombrado pela intensa luz de sua irmã Madre Teresa da Anunciada. No entanto, importa recordá-la pelos feitos de sua vida heróica, absolutamente impressionante, pelo que importa fazer memória deste vulto da Igreja açoriana, como modelo de virtude e de fé para os cristãos pela sua intercessão junto do Deus.

*António Pedro Costa é presidente da Fundação Pia Diocesana de Nossa Senhora das Mercês

Scroll to Top