O direito de ser culpado

Pelo Pe Teodoro Medeiros

Ainda Herzog. De entre as dezenas de filmes que realizou, uma grande parte é documentário. Sobre tudo e mais alguma coisa; pinturas rupestres em França, a vida na Antártida, a educação de crianças incapacitadas na Alemanha, a vida de um esquiador, as consequências da primeira guerra do Golfo, a morte de um apaixonado de ursos selvagens (pelos seus amigos ursos), uma povoação que espera a erupção do seu vulcão.

Além de todos estes, Into the Abyss, qualquer coisa como “dentro do abismo”, e que merece destaque por lidar com um tema polémico, o da pena de morte nos Estados Unidos. O filme narra e entrevista o que se refere a 2 rapazes que mataram 3 pessoas. A razão? Queriam dar umas voltas no carro desportivo que eles tinham na garagem. Bem entendido, a intenção não era matar, apenas pedir para dar uma volta no carro.

O leitor imagine, se puder, que era um assassino condenado à morte: o que diria a quem o visitasse? Talvez se mostrasse arrependido e aceitasse o seu destino como justo. O maior culpado e protagonista, Michael Perry, não vê a coisa dessa forma. Só ele e um companheiro foram acusados e confessaram mesmo os crimes; ele próprio levou a polícia ao local onde estavam os 2 corpos das vítimas desaparecidas. Mas declarou-se inocente mais tarde.

Ao fazê-lo, Michael não está a tentar convencer ninguém; os momentos de entrevista deixam isso muito claro. Mais ainda, ele não está sequer a tentar covencer-se a si próprio da sua inocência. Não, de forma alguma, uma vez que é visível que não existe essa necessidade; este rapaz de 22 anos está muito sereno. Como explicá-lo?

Explica-se na alegria com que recebe a câmara, com que fala de si mesmo e da sua situação. Para ele, quem está no corredor da morte não se pode deixar influenciar pelo ambiente. Para sermos justos, os estados americanos que condenam à morte não o fazem sem critério, de forma leviana; os casos de condenação implicam sempre requintes de malvadez ou premeditação fora do comum.

Como é o caso: -“o meu processo é um erro; não tem nada a ver comigo”. Daí que ele se sinta no direito, até no dever, de se desligar emotivamente de todo aquele imbróglio: não é assunto que lhe diga diretamente respeito. De modo que não vão conseguir deitá-lo ao chão no seu orgulho pessoal; ele está bem acima deles.

Arrependimento? Culpa? Não é para ele, não faz figuras dessas. Enquanto outros condenados repetem o chavão “de qualquer maneira vai correr bem, vou estar em paz depois de ser executado” com medo, a voz de Michael soa a esclarecimento, a pedagogia.; ele é um vencedor da vida que explica aos outros o quão grande ele é.

O realizador declara desde o início ser contra a pena máxima. Mas essa perspetiva não transforma o filme num exercício de litígio com o sistema, numa cruzada para provar o seu ponto de vista. É nos poupado o espetáculo de pensarem por nós e deixarem-nos pouco para pensar; entrevistando o assassino, em vez de insistir nas falhas lógicas das suas

palavras, o realizador deixa-o exprimir-se sem restrições. E ele mostra quem verdadeiramente é.

Significativo ainda é o caso do trabalhador que desistiu. Depois de pouco mais de cem casos de execuções em que participou, preparando o condenado, ele recusou-se a fazer ainda que só mais um serviço. Arriscando não vir a receber reforma, ele despediu-se do seu emprego, resumindo tudo na tão americana expressão “não aguento mais”.

Existem ainda 4 documentários, sobre outros tantos casos de condenação máxima, do mesmo realizador. São desenvolvimentos da obra principal, mas mais compactos e talvez até mais reveladores. Como o caso do casal adolescente que “exorcizou” um bebé de 13 meses. Hediondo mas a impressão que fica é que o uso de drogas pode equivaler a doença mental severa.

Ou ainda Linda Carthy, responsável pelo assassínio de uma jovem mãe. No encontro com a advogada de acusação, esta questiona o entrevistador sobre o valor que um filme sobre o caso possa ter. Para quê falar falar com assassina se a vítima é quem foi assassinada? Para quê expôr o seu ponto de vista, dar-lhe essa benesse e humanizá-la aos olhos do público?

A resposta não se fez esperar:

-“Aqui tenho de dizer uma coisa importante: não estou a tentar humanizar Linda Carthy; ela é um ser humano, ponto final”.

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