O último dia do mundo

Pelo padre José Júlio Rocha

“Vais levar pancadaria como tambor em dia de bodo”. Esta era uma expressão antiga que punha a rapaziada em sentido. Referia-se, claro, aos tambores dos foliões que sofriam horrores durante a festa. Toda a gente que se prezasse, mesmo pobre ou remediada, tinha o seu “fatinho de bodo”, a melhor roupa que se pudesse vestir. Na ilha Terceira, o dia de bodo, o Pentecostes, era o mais importante do ano. Era, porque já não é: Natais, Sanjoaninas, Festas de Praia, até dia dos namorados, dos amigos e das amigas ultrapassaram pela direita o amor que os terceirenses tinham aos bodos do Espírito Santo.

Os dicionários portugueses definem assim o bodo: “Distribuição de alimentos, dinheiro e vestuário aos pobres, em dias festivos.” Bastaria esta definição para nos fazer voltar aos tempos antigos, ressuscitar o dia de bodo, não apenas como tardes de convívio entre império e despensa, mas como símbolo dos valores mais belos de uma sociedade. É que houve um tempo em que éramos quase todos pobres. Hoje é muito diferente: continuamos a ser quase todos pobres. Mas pobres com roupa e comida. Mesmo assim, pobres.

O primeiro bodo de que há memória na ilha Terceira remonta há exatamente 530 anos, em tempos de dom João II e da sua esposa, a incontornável Leonor de Lencastre, senhora das Misericórdias. Em 1492, quando Colombo descobria a América, já se distribuía o bodo aos pobres, à porta da capela do Hospital de Santo Espírito, no Pátio da Alfândega. E, a partir daí, nunca mais parou.

Os primeiros povoadores vieram para estas ilhas desbravar terreno e construir povoados onde pudessem viver. A viagem durava semanas e raramente havia regresso. Creio que a “Saudade”, melodia identitária destas ilhas, terá começado quando o primeiro povoador desembarcou por aqui e se deu conta de que jamais veria a sua terra natal, os seus, o seu passado.

Muitos vulcões moldaram estas terras e estas gentes. Nada se pode contra um vulcão a não ser confiarmo-nos ao Espírito Santo, que, na tradição oral das nossas gentes, muitos milagres terá feito para salvar povoações, terras, pessoas e animais. Os terremotos moldaram também os nossos costumes e a nossa fé, bem como o isolamento que transformou o mar na nossa terra, as tempestades que troavam a ira dos elementos, o nosso indescritível isolamento. Somos um povo único. Um povo de escritores, poetas, artistas moldados pelo fado desta terra sempre distante, olhos de infinito em quase todos nós, desejando – quantas vezes – deixar esta terra e procurar prosperidade em Califórnias perdidas de abundância mas, sempre que longe, não desejar outra coisa senão voltar ao torrão dos terremotos, vulcões e tempestades. Atrai-nos o abismo porque nele fomos moldados.

Nas nossas casas de pedra negra com teto de palha aprendemos a ser pobres. Era uma vida de sobrevivência, acostumada a levantar-se de noite, ainda Sol escondido, descalços pelas vielas do inverno, com gelo a queimar os pés, trabalhando nas vinhas, pomares e campos de milho, de trigo, de laranja e de paciência. Muitas coisas faziam falta e havia tempos em que faltava quase tudo. Ia-se à missa ao domingo, rezava-se pelas trindades, comia-se pão amassado a suor, morriam filhos à nascença e as mães choravam sem se dar por isso.

No meio de tudo isso havia um dia em que tudo era diferente. Um dia em que céu e terra se uniam como se não houvesse ontem nem amanhã, em que as pessoas forjavam a alegria e a felicidade como quem entrelaça um cesto de vimes. Era o dia de bodo.

Depois da missa de coroação, o cortejo partia para o Império, nome esquisito para uma capela de cores garridas, janelas grandes e uma brancura luminosa de paz por dentro, em forte contraste com a escuridade das nossas igrejas. Naquele dia não havia mais pobres para o resto da existência: acabavam de vez, mesmo que só nesse dia. Os homens de chapéu, fato preto e camisa branca, e – incrível – sapatos nos pés. As senhoras com vestidos discretos mas bonitos. Punha-se o melhor em cima do corpo. Diante das coroas era distribuída a brindeira de pão. Para todos. Ricos e pobres, nobres e plebeus recebiam brindeiras iguais, bebiam vinho do mesmo copo, sentavam-se à mesma mesa da despensa a partilhar a fraternidade, as bebedeiras com vinho do Espírito Santo não eram pecado. Sempre que passava alguém de fora, no seu “char-a-bancs” (charabém), ou no automóvel – que só os ricos tinham – mandavam-no parar em frente da despensa, e lá vai um copo de vinho e uma brindeira em nome do Senhor Espírito Santo.

As festas do Espírito Santo distinguiam-se pela sua forte componente de solidariedade, o que me faz lembrar aquela quadra do infinito Charrua ao meu primo Francisco, sócio de um talho em Toronto:

Francisco de ideias nobres

Que amas grandes e pequenos:

Corta bem a carne aos pobres

E aos ricos, mais ou menos.

 

Éramos todos iguais. Hoje, mesmo em dia de bodo, já não tanto. É pena.

Falei de liberdade; falei de igualdade; falei de fraternidade. O que é que a Revolução Francesa trouxe de novo que já não vivêssemos aqui, descaradamente, nestas ilhas perdidas, com a bênção do senhor padre e da Igreja?

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular.

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